20071130

economia doméstica no 19 da calle de toledo

Ao longo dos últimos dias uma batalha silenciosa opôs-me a Manuela. A reserva de papel higiénico foi-se aproximando inelutavemente do fim sem que nenhum de nós tivesse a iniciativa de renovar o stock. Ontem à noite não restava mais que o triste cilindro de cartão à em torno do qual o papel é enrolado. Jorge está em Sevilha, o que o subtrai desta questão. Já Manuela pode ser manhosa ao ponto de, nesta situação de crise, usar a casa-de-banho do apartamento de Nieves, sua mãe. Aliás, chego a imaginá-la encaminhando os seus filhos para a casa da avó. Não tendo assistido a nada disto, parece-me o cenário mais provável.
Ante esta desigualdade de circunstâncias tive que me render, atravessar a rua e comprar um pacote de doze rolos. À minha frente, na fila para pagar, estava um sujeito com uma feição a meio caminho entre a do o João Vieira Pinto e a do Iggy Pop. Comprou quarenta iogurtes.

20071129

scheveningen

O eléctrico levou-nos até Scheveningen, a parte costeira de Haia e a estância balnear mais popular do país. Esplanadas vazias, lojas turísticas, um hotel de prestígio e casinos dispostos em frente ao chumbo outonal do Mar do Norte. Destaca-se um grande pontão de aspecto futurista que termina numa estrutura já desactivada com aspecto de plataforma petrolífera em miniatura. Os meus horizontes mais desafogados em Madrid tenho-os na autoestrada a caminho da faculdade. Soube-me bem ver aquele mar agreste.
Dois dias depois, na loja do museu Van Gogh em Amsterdão, encontrei entre os postais uma representação de um cenário marítimo. Ao consultar o verso soube que se chamava View of the Sea in Scheveningen. Pareceu-me esquisito não o ter visto exposto mas comprei-o porque além de gostar da imagem seria uma boa recordação do lugar. Acabo de ler que foi roubado em Dezembro de 2002 (BBC); os ladrões foram capturados e condenados mas a pintura ainda não apareceu (FBI).

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Vincent van Gogh, Zeegezicht bij Scheveningen, 1882

gy!be

Nunca me fartei dos primeiros seis minutos e quinze segundos do álbum Lift Your Skinny Fists Like Antennas to Heaven dos Godspeed you! Black Emperor. Experimentem, é só carregar no play.

boomp3.com

um grau lá fora

Acabo de chegar de Lavapiés, antigo bairro judeu que ainda hoje conserva a má fama, onde comi umas empadas argentinas que fazem valer a pena estar vivo.

20071128

para quem está em lisboa

Relembrar que quinta-feira, dia 29, às nove da noite, é inaugurada a exposição Quinta do Gato Cinzento no Palácio de Valadares, 32 da Calçada do Sacramento ao Carmo.
Acrescentar que, sexta-feira, dia 30, às sete e meia da tarde, abre a Trama, livraria mas não só, no 25B da Rua São Filipe Nery ao Rato.
O programa Erasmus devia oferecer uma bolsa complementar que permitisse a participação nos beberetes (nunca tinha escrito esta palavra) de amigos.

falhanço

Estive à volta de três parágrafos durante um bom pedaço. O tom era mais confessional do que tem sido regra, mas o pior é que o texto era frouxo. Tentei remendá-lo, substituir os verbos que se repetiam, eliminar as aliterações involuntárias. Nada feito, não se endireita a sombra de uma vara torta. Para a posteridade fica o registo do falhanço.

20071126

jactância académica

Tenho acesso ao JSTOR a partir de casa.

humor nacional

Os meus contactos com a produção humorística portuguesa fazem-se, grosso modo, de duas formas. Uma é ver os vídeos do Gato Fedorento que a RTP disponibiliza. A outra é espreitar o blog de Santana Lopes:

E esta obra, conhecem? Ali, na Alameda das Linhas de Torres, ao Lumiar. Que bem sabe ver aquele fantástico espaço verde, feito tal e qual como o pensei. Creio que muito influenciado por outros idênticos de que usufruí quando estudava em Cambridge, nos Verões da minha adolescência. Lembro- me de ir de comboio e olhar pela janela, vendo tantos miúdos a jogarem à bola, ou, simplesmente, a correrem, em grandes relvados, quase sem obstáculos, sem bancos de jardim, sem grandes arbustos, sem vedações de ferro a protegerem não sei quantas plantas.
Simplesmente espaços verdes, grandes relvados, relva de jardim bem tratada, bem aparada. E um grande espelho de água. Foi o que eu pedi aos engenheiros da Câmara e à equipa da SGAL(sociedade de gestão da alta de Lisboa). Não sou engenheiro paisagista, pelo que não sabia, nem sei, desenhar. Tento explicar,assim fiz na Figueira, assim fiz em Lisboa. Grandes espaços para as famílias correrem e brincarem. Também para se poder jogar à bola, sem vir a Polícia e levar a tal bola, como acontecia quando eu era miúdo e jogávamos no pátio, ao pé da nossa casa. É dos maiores motivos de orgulho, esta Quinta das Conchas, a Quinta Bensaúde, ali na Estrada da Luz,(recuperação e abertura ao público), o Jardim do Arco Cego e, muito, muito, a "grande volta" dada a Monsanto. Em menos de quatro anos, sem maioria na Assembleia Municipal e com muitos percalços pelo meio. E não falo destas realizações por qualquer intuito de candidatura. Não posso, não quero e não devo. Mas, ORGULHO, isso sim: posso, quero e devo.


Ao ler estes parágrafos assola-me uma reminiscência das Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar.

20071125

haia

Em Haia tinha à minha espera a Ana e a Mariana. Como não me agrada expor demasiado a vida dos que me rodeiam, fico-me pela constatação de que foi reconfortante estar com pessoas amigas. Ainda que conheça bastante gente em Madrid não faço amizades depressa.
Desfrutei de uma visita guiada à cidade. A casa onde me acolheram fica numa zona de maioria turca, a dez minutos a pé do centro. À medida que se caminha em direcção às ruas principais as padarias e os talhos turcos vão dando lugar a lojas de discos e muitas, muitas de roupa. Dizer que o ambiente é cosmopolita é pouco: Haia é um centro na teia legal que rege a burocracia mundial. Ali se misturam funcionários de organizações internacionais, representantes diplomáticos, empregados de multinacionais, estudantes estrangeiros, imigrantes e, enfim, uns quantos holandeses. As lojas, e são muitas, estão sempre cheias. Entrei numa boa livraria onde, sintomaticamente, uma razoável parte dos livros era em inglês. Há restaurantes com bom aspecto, quase todos de cozinha internacional; segundo as minhas amigas, não se pode dizer que a gastronomia holandesa exista enquanto tal.
Não só de globalismos diluidores se faz Haia, há espaço para o idiossincrático. O que mais salta à vista é a hegemonia das bicicletas, escuras e curvilíneas: pais com crianças enfiadas em cestos, miúdas que pedalam enquanto escrevem mensagens no telemóvel. Depois, os pormenores: um casal fumando um charro enquanto caminha com o filho pela mão; uma escondida loja de mapas de que a Mariana me tinha falado. A cidade em si mesma é agradável. Gosto do equilíbrio entre os edifícios antigos do coração da cidade e a arquitectura arrojada nas zonas menos centrais. Não sendo tão bonita quanto Delft ou, vá, tão estimulante quanto Amesterdão, Haia pareceu-me um bom sítio para se viver. A dimensão espacial é muito diferente das outras cidades médias do norte da Europa que conheço - sítios na Suécia e na Noruega onde a geografia permite um ordenamento mais disperso.
Finalmente, a questão à qual sempre se alude quando falamos desta zona: estar em Haia é estar a pouco tempo de Amesterdão, sim, mas também de Bruxelas, do oeste da Alemanha, do norte de França e de Londres. Confesso ainda que não fui ao museu Mauritshuis mas adianto que, em Amesterdão, visitei o Van Gogh.

(adenda: corrigi uma gralha no último parágrafo)

cristina

Faço uma interrupção na descrição do meu périplo holandês. Há pouco entrou cozinha adentro uma rapariga gira. Sorriu-me, apresentou-se, soy Cristina, enquanto me dava dois beijos. Perguntou-me se sabia do colador. Nesta casa não estranho demasiado o que quer que seja, portanto respondi que não, que não sabia, mas que às vezes vejo por aqui um agrafador. Pareceu-me pouco convencida e foi-se embora tão depressa quanto chegou. Dois minutos depois entrou aqui Jorge, o filho de Manuela. Contei-lhe o sucedido e perguntei-lhe pelo colador. Acto contínuo, ele agarra não um tubo de cola, como eu pensava, mas um passador - sim, aquilo que se usa, entre outras coisas, para separar a água da cozedura dos alimentos. Disse que a rapariga estava no apartamento do lado, o de Nieves, mãe de Manuela. Provavelmente viverá lá e ainda não nos tínhamos cruzado. Fui entregar o passador e recebi em troca um sorriso de Cristina.

chegada à holanda

Aterro em Schiphol depois de duas horas de sono em Barajas e outra no avião. Assim, a minha primeira impressão do território holandês é ensonada: pela janela do A320, depois deste romper a camada de nuvens, um monte de guindastes costeiros e uma imensidão de contentores. Já no aeroporto, sinto-me mais baixo do que é habitual e estranho o som do neerlandês, uma espécie de suave arranhar. Não espero muito tempo pelo meu saco e dirijo-me à estação de comboios. Olho de relance para o luxuriante mapa das linhas ferroviárias holandesas e localizo o meu destino, Den Haag HS. A viagem serve de introdução aos Países Baixos: campos húmidos onde pastam ovelhas são abruptamente interrompidos por vilas e pequenas cidades de aspecto funcional. Vêem-se patos e gansos navegando nos canais e corvos patrulhando os ares. Não demoro a chegar a Haia e salto para o frio da plataforma.

20071123

den haag

Gosto disto, é mesmo diferente daquilo que conhecia até hoje.

20071120

noite em barajas

Daqui a pouco estarei no metro a caminho do aeroporto de Barajas. Vou lá passar meia dúzia de horas, aguardando o meu voo. Não é uma experiência totalmente nova: há pouco mais de um ano joguei à bola com o Pedro no aeroporto de Barcelona. Às quatro da madrugada, passes rasgando a zona dos balcões de check-in durante dez minutos até que chegasse uma segurança encorpada. Desta vez não terei companhia além das leituras: o El País, um livro de ficção ainda por escolher e, se calhar, o calhamaço da Cambridge University Press sobre pensamento político do século XX – não é o formato mais apropriado mas sinto-me cansado de castelhano. Também levo uma sandes de presunto em pão de cereais, um pacote de bolachas e uma extravagância: um litro de Compal de maracujá. Um táxi para o aeroporto seria mais caro do que o bilhete de avião para o meu destino. E qual é o meu destino? A Holanda, país que não conheço e onde duas pessoas que muito estimo me aguardam.

aranjuez

Levei dois meses em Madrid sem sair daqui. Isso só aconteceu no Sábado passado: fui a Aranjuez, a cinquenta quilómetros, declarada real sítio por Filipe II (o primeiro de Portugal) em 1560. Visitei o palácio, que agora pertence aos Bourbons: muito rococó adornando inverosímis divisões que testemunham a opulência desta monarquia. Mas o melhor do dia foi a caminhada pelos jardins envolventes, imensos e apaziguadores. Árvores centenárias, elegantes toutinegras e a humidade do Tejo.

20071119

exposição quinta do gato cinzento




O acontecimento do Outono lisboeta que mais me custa perder.

boa noite



Esta é uma gravação ao vivo da minha música de letargia favorita: Loch Raven, dos Animal Collective. A versão de estúdio convida mais ao sono (o volume da voz é mais baixo).
Andei indeciso entre que vídeo colocar aqui e editei este post umas quantas vezes. Como tal, peço as minhas desculpas.

jack london

Uma das minhas disciplinas é Utopía y antiutopía en el mundo contemporaneo. Quis ter esta cadeira assim que soube que ela existia e, embora não esteja a ser tão boa quanto supunha, vale a pena. Agrada-me estudar o cruzamento da criação literária e da proposta política. O principal objectivo é conhecer os traços gerais do género literário utópico, com destaque para as suas manifestações no século XX. Partindo de Thomas More, analisa-se Looking Backward de Edward Bellamy, Brave New World de Huxley, 1984 de Orwell.
Além destes clássicos, também se faz um percurso através de outros textos: Zamiatin, Morris, Wells, um monte de feministas e ecologistas. Cada um de nós deve apresentar um livro e a minha preferência foi para Jack London. A obra é The Iron Heel, de 1908.
Gosto de Jack London. Não está no meu Olimpo literário, até porque só lhe conheço uma pequena parte da produção, mas gosto dele. Praticou boxe, percorreu os carris da América do Norte na companhia de mendigos, foi um socialista na Califórnia do início do século XX, desbravou os mares do Sul, chegou ao Japão. Apesar de o seu centro de gravidade ser o Oceano Pacífico também dormiu nas ruas de Londres. É fácil gostar de alguém com uma vida assim, mesmo que não escreva por aí além. Jack London parece-me um bom escritor, sobretudo enquanto contador de histórias
Quanto a The Iron Heel, não sendo uma obra prima, tem o seu interesse. As personagens são, à semelhança de outras de Jack London, pouco profundas. A acção é narrada por Avis, a filha de um professor universitário que sai da candura política para se tornar revolucionária. O motivo: apaixona-se por um líder do movimento socialista, um super-herói-operário plenamente consciente da totalidade dos processos sócio-políticos que se vão desenrolando. De facto, Ernest Everhard, assim se chama ele, é tão obstinado quanto à inevitabilidade do sucesso da revolução quanto desencantado face às hipóteses de a ele assistir.
Os trusts, que constituem a oligarquia política e económica, vão reforçando de modo progressivo o seu poder. Perante uma greve geral que quer impedir uma guerra mundial, os grandes capitalistas estrangulam definitivamente o movimento operário. A oligarquia acaba por conquistar o apoio dos sindicatos mais fundamentais da época industrial, o dos trabalhadores do aço e o ferroviários, e isola-os dos restantes operários. Deste modo estes privilegiados passam a formar uma casta à parte, com salários e condições de vida muito superiores aos demais produtores. Há ainda um outro grupo que goza do benefício dos olicargas: o dos mercenários, responsável por reprimir qualquer suspeita de subversão.
Os revolucionários rapidamente formam uma sociedade clandestina. Apesar dos esforços da oligarquia, infiltram-se em toda a parte: prisões, nos hospitais, na milícia, nas fábricas. Este é um dos aspectos mais interessantes do livro, onde são descritas as estratégias, de parte a parte, para evitar a espionagem.
De resto, o texto tem duas camadas. O corpo principal é o manuscrito de Avis, em que ela descreve, primeiro, o seu encontro com Ernest e, logo, a rápida ascensão da oligarquia e a vida na clandestinidade. O clímax são os capítulos finais nos quais se descreve o falhanço de uma tentativa de revolta em Chicago que enche a cidade de sangue. Só que London aumenta a complexidade do texto ao inserir notas de rodapé assinadas por Anthony Meredith, um estudioso que comenta o diário de Avis sete séculos depois de este ter sido escrito. Isto chega a resultar cómico, como neste excerto em que é explicado de forma condescendente o que é uma greve:

These quarrels were very common in those irrational and anarchic times. Sometimes the laborers refused to work. Sometimes the capitalists refused to let the laborers work. In the violence and turbulence of such disagreements much property was destroyed and many lives lost. All this is inconceivable to us--as inconceivable as another custom of that time, namely, the habit the men of the lower classes had of breaking the furniture when they quarrelled with their wives.

É através de Meredith que sabemos que a revolução acabaria por triunfar após duzentos anos de domínio oligarca.
Ao começar este post não era meu objectivo fazer um resumo do livro. No entanto, tendo que apresentá-lo na terça-feira, acabou por servir de complemento ao estudo. Esta é a primeira cadeira de literatura que tenho, mas acho que as minhas ideias estão ordenadas.

20071118

domingo

Hoje é dia de comer tostas no Rastro, comprar o El País, preparar a apresentação de Iron Heel, pôr a correspondência em dia e fazer uma actualização digna desse nome a este blog. Se conseguir realizar duas destas coisas já não está mal.

bom dia

"Comoveu-se (com o 25 de Abril)?

Eu? Não. Não sou muito dado a emoções. Sou mais dado a angústias e ansiedades. Sou daquelas pessoas que verifica três vezes se fechou a porta e a torneira antes de sair de casa."

E, mais à frente,

"(...) Perguntaram-me o que há para fazer aos 65 anos e respondo: há pouco. Mas não tem muita importância. A sociedade está a tomar formas tão horríveis que não me apetece viver muito mais neste mundo.

O que quer dizer?

Se me dissessem «tens mais 20 anos de vida», não, muito obrigado. Nem dez. Mais dez anos a aturar esta gente? Nem pensar."

O sempre lacónico Vasco Pulido Valente em entrevista ao Expresso (à Única) de ontem - cópia pirata aqui.

20071116

woke up this morning, got yourself a gun

Onze horas de sono interrompidas por um ataque de espirros. Engulo meio pacote de bolachas, leite bebido directamente do pacote e uma aspirina. Tiro um bife de atum do congelador e resolvo fazer esta barba de duas semanas.

puto día

Uma estéril ida ao aeroporto de que voltei só por um motivo tão inverosímil que não o partilho aqui. De Lisboa, um e-mail relativo a assuntos da FCSH que fez ampliar o leque de sentimentos: além da tristeza e da frustração, também o nervosismo me invadiu. Vinte minutos na fila de espera dos correios do insuportável Corte Inglés: êxitos de pop espanhola alternados com as irritantes vozes que anunciam promoções. Fiquei duas vezes preso no elevador do prédio. A ligação à net continua com soluços e não me deixa ver a entrevista concedida por Zapatero a Buenafuente, o mais popular apresentador de talk shows de Espanha. Envolvendo estes acontecimentos, estilo frequência de fundo, uma constipação incipiente e um certo peso na cabeça (não confundir com a consciência).

20071115

belíssimo

20071114

engraçado

O Pedro Magalhães gosta de ouvir o Panda Bear. Enquanto admirador de ambos, tenho-os em compartimentos mentais tão afastados que nunca suporia isto.

20071113

dois estranhos no terraço

Duas e meia da manhã no último andar de um prédio da rua de Atocha. Do terraço vê-se uma boa porção de Madrid e mais além. Como a topografia é pouco acidentada não há muitas oportunidades para desfrutar de panorâmicas. Aproveito, gosto de ver cidades de cima - a superfície inesgotável de telhados, antenas, estendais e campanários de Italo Calvino. A noroeste destacam-se a Gran Via e a Plaza de España; edifícios de inspiração nova-yorkina que aqui sobressaem e em Manhattan seriam minúsculos. Escalas.
Ela treme enquanto tira do bolso o maço de Lucky Strike. Pergunta-me se quero um. Faz tanto frio que me apetece, até porque ajudaria a enquadrar o silêncio que se adivinha. Hesito o suficiente para que ela perceba que não fumo. Não te dou, diz-me.

20071112

luto

Hoje vêem-se na faculdade mais pessoas vestidas de negro do que é habitual.
Este é o motivo (El País).

20071111

o cozinheiro

O Barcelona perde por um a zero e joga mal. O Getafe tem menos bola mas chega com mais perigo à área. Sou o único que segue a pouco viva partida, tirando um madrilista que exulta com a sofrível exibição do Barça. Ser do FCP em Lisboa deve ser semelhante a isto, na alegria e na tristeza - bem sei que com maior predominância da primeira.
O cozinheiro sai da sua zona de trabalho, chega-se ao balcão e aumenta o volume do relato. Para que oiças, diz-me, não pareces muito entusiasmado. Respondo que o jogo está a ser fraco mas agradeço. Pergunta-me quem joga com o desinteresse dos que não querem saber de futebol.
São nove e tal e a cervejaria está algo deserta. Pouca gente hoje, comenta, há um grupo que vem todas as sextas e ainda não os vi esta noite. Avanço com a hipótese de que, por ser feriado regional, as pessoas saem de Madrid sem que haja fluxo no sentido contrário. Ele anui com a cabeça e pergunta-me a que dias da semana se celebram os feriados de Dezembro. Não lhe sei responder. É que gostava de ir ao meu país pelo Natal, diz-me, passar lá uma semana. Pergunto-lhe de onde é - o sotaque denuncia uma origem caribenha. É de Cuba. Digo-lhe que nunca lá estive mas que sei que é uma terra bonita. Confirma, discorre sobre as praias, uma semana lá evapora-se, as horas gastas em aviões, mas enfim, não pode ficar mais tempo fora de Madrid. Aproveita para ir ao dentista, em Espanha é caro.
Família em Cuba? Pouca, responde, nem mãe nem pai. Faz oito meses que foi enterrada a tia que o criou. Pergunto-lhe se está em Madrid há muito. Oito anos, já tinha passado quinze em Estocolmo. Já lá estive , digo-lhe, também é uma boa cidade. Concorda, e acrescenta que, além disso, é mais calma, lá as pessoas sabem viver. Sentia-se seguro na Suécia, onde não há problemas em andar na rua à noite, deixar o carro aberto, esquecer-se da chave na porta de casa. Para ele, Havana e Madrid são cidades de ladrões. Há meses entraram-lhe no seu apartamento e levaram-lhe tudo, câmara de vídeo, televisão, roupa, tudo. Ainda perseguiu os assaltantes mas acabou caído no chão. O seguro não pagou nada. Hijos de puta, murmuro. Ele mantém uma expressão resignada que lhe imagino frequente: tem o aspecto desencantado dos tristes crónicos.
Na Suécia é que se está bem, resume; ainda tem uma casa no campo que tenta visitar todos os anos. Porquê sair de lá, então? Suspira e diz que é uma história comprida, queria ajudar alguém e acabou mal. O movimento aumenta na cervejaria e ele volta à cozinha.

domingo à tarde no 19 da calle de toledo

Acabado de chegar a casa, dou-me conta de que na cozinha se desenrola uma sessão de tarot. Sendo o meu quarto contíguo, oiço na perfeição Manuela e a sua amiga. Neste momento fala-se de amor eterno penetrando em todas as células, positivo e negativo, totalidade e equilíbrio. Vacilo, sem saber se escute os esoterismos que saem das suas bocas ou se volte de imediato ao exterior.

susan sontag (2)

Um post dedicado ao Paulo, instando-o a subir o Vesúvio com il Cavaliere.

Sontag, herself, is a hybrid of reason and romance. One need only peruse the vast library in her airy five-room apartment for confirmation. An intellectual who studies the history of ideas might have many books. But only a person intemperately in love with reading possesses 15,000.
"I'm an addicted reader," she says, "a hedonist. I'm led by my passions. It's a kind of greed, in a way." She laughs happily. "I like to be surrounded by things that speak to me and uplift me."
I ask how the books are arranged.
"Ahhh. By subject or, in the case of literature, by language and chronologically. The 'Beowulf' to Virginia Woolf principle. I'll show you."
"Nothing is alphabetical?"
"I know people who have a lot of books. Richard Howard, for instance. He does his books alphabetically, and that sets my teeth on edge. I couldn't put Pynchon next to Plato! It doesn't make sense."

(texto e entrevista por Leslie Garis; The New York Times, 2 de Agosto de 1992)

20071110

"i'm free now, free to look out the window, free to live my story, free to sing along"

Duas e meia da tarde, temperatura entre o fresco e o ameno. Jorge (o mexicano) está em Valladolid, Manuela e os miúdos em parte incerta. O meu pequeno-almoço foi um resto de truta fumada com tostas e começo a ter fome. Aqui ao lado há bodegas onde se podem comprar nutritivas sanduíches por dois euros. Tenho livros para ler, um de Jack London e outro de Eric Voegelin. Além da leitura o meu único plano consiste em ver o Barça às oito. Preparo uma mochila, escrevo este post e faço-me às ruas.

perdidos e achados (2)

Afinal não pude reaver o meu telemóvel ontem. Devo confessar que o caso me estava a parecer de resolução demasiado imediata; é frequente ver-me envolvido em enredos mais elaborados e que me consomem mais tempo e energias. Este episódio, em vez de excepção, conserva-se no campo da regra, porque ontem foi feriado em Madrid. Só em Madrid, justamente, porque o motivo foi a celebração da Virgem de Almudena. Esta patrona da cidade terá ajudado El Cid a conquistar a cidade aos Mouros.
Assim sendo, e como o serviço de perdidos e achados está encerrado durante o fim-de-semana, só recupero o meu movistar algures na próxima semana. Claro que as dificuldades não podiam ficar por aqui: além de se situar numa ponta remota da cidade, este serviço está aberto das oito da manhã às duas da tarde. Escusado será dizer que este é um horário de atendimento incompatível com o das minhas aulas.
Como nota adicional, deixo aos interessados uma relação dos objectos encontrados em
formato pdf . Cachecóis, telemóveis, sacos de plástico, envelopes com radiografias, documentos, livros, lenços, óculos. O que mais me chamou a atenção foi um porta-moedas vermelho contendo quatro euros e noventa e nove cêntimos.

20071108

perdidos e achados

A minha relação com os telemóveis desde que aterrei em Madrid tem sido tumultuosa. O destino tem um jogo de cintura que me deixa a mim, que não danço, completamente fora de tempo: assim que saí do avião enganei-me a digitar o código pin, algo que nunca acontece. Teria mais duas oportunidades mas, misteriosamente, o cartão ficou imediatamente bloqueado. Não procurei explicações e aceitei com estoicismo esta privação. Afinal é uma nova fase, pensei, quando for a Lisboa, no Natal, procurei o cartão onde está escrito o puk.
Depois de uma sangria de moedas nas dispendiosas cabinas espanholas comprei um Alcatel bastante manhoso, o mais barato do Corte Inglés. Ainda hoje desatino com o sistema de escrita de mensagens e desespero com a lentidão dos menus. Aqui os preços das chamadas e das mensagens são disparatados; prefiro não estimar quanto gastei em comunicações ao procurar quarto. Faço carregamentos nas lojas de chineses. O toque é um nocturno de Chopin, o que significou uma regressão - em Portugal tenho Liszt.
Hoje, ao apalpar os meus bolsos, percebi que tinha comigo as chaves e a carteira mas que me faltava o outro elemento da trindade material do homem moderno - sim, que eu não tenho iPod. Tinha acabado de sair do autocarro que me trouxera da faculdade; estava com Marion e Victoire, que passaram a viagem a imitar os sotaques suíço e belga. A minha boa disposição esfumou-se e comecei a praguejar. Voltei ao autocarro mas em vão. Regressei à faculdade, refiz os meus passos: nada. Começava a sentir um amargo na boca por ter de comprar um novo cartão e anunciar um novo número. O desconsolo redobrou quando me lembrei que a Movistar, a habitualmente sovina operadora, me tinha dado um bónus bastante razoável há dias - uma promoção do género receba duas vezes o que carregar. Desgostoso, achei que uma caminhada me animaria. Vim de Moncloa até casa a pé, descendo a Princesa, passando pelo Palácio Real, cortando as ruas velhas e contornando a Plaza Mayor. Entrei num autoservicio e comprei duas garrafas de vinho para a festa de hoje à noite em casa de Victoire. Sentia-me melhor: bem vistas as coisas, teria sido mais grave perder a carteira ou o passe.
Entrei em casa, não tive de rodar a chave; a porta está quase sempre aberta. Ao passar junto do quarto de Jorge ele chamou-me: telefonaram-lhe, a partir do meu número, da EMT (a empresa de transportes) e disseram que podia ir buscar o telemóvel aos perdidos e achados. Parece que lhe perguntaram se falava castelhano, o que leva a crer que terão falado com mais gente. Segundo o site da Movistar, o meu saldo sofreu uma considerável razia. Provavelmente terão feito chamadas para os poucos números portugueses que tenho registados. Amanhã aferirei a exactidão destas suspeitas.

20071107

jorge, o mexicano

Jorge nasceu no México há trinta e dois anos. Parece mais jovem e percebe-se que lhe desagrada a perspectiva de envelhecer. Não tem antepassados mexicanos (indígenas) ou espanhóis. Os seus avós são um judeu lituano, uma polaca, um sírio e uma libanesa. Come muitos vegetais, mistura a gastronomia árabe e a mexicana. Tem uma fixação que raia o obsessivo por nórdicas e germânicas. Além de músico, partilha com um tio que vive nos Estados Unidos uma editora de livros infantis. Também tenta entrar no mundo da representação.
Os seus gostos musicais são eclécticos, dos boleros colombianos à ópera, passando por John Coltrane e David Bowie. Canta, toca guitarra e compõe. Produziu bandas sonoras para curtas metragens. Actualmente ensaia um duvidoso espectáculo de zarzuela. O tema: um faraó impotente tem à sua disposição a mais bela virgem do Egipto. Diz que não gosta do grupo e que nem sequer aprecia o estilo. A minha suspeita é que o faça pela sensação de actuar ante um grande público.
Toca sozinho em pequenos bares. Assistir a um concerto seu é presenciar uma narração expurgatória, um desfiar de memórias agridoces sobre as suas relações. Antes de cada uma das músicas Jorge explica a sua origem. Por exemplo, uma tarde passada numa ilha grega com uma austríaca. A luz incidindo na escada do apartamento de uma alemã. Um tango escrito quando se separou de uma argentina. Esta tendência para o dramatismo ilustrado cansa e resulta numa espécie de autoparódia involuntária; prefiro a mais despretensiosa exploração do folclore mexicano. Aquela que me parece a sua melhor música é inspirada numa lenda sobre uma mulata de Córdoba que enfeitiça os homens e é queimada pela Inquisição.
Tem viajado bastante. Esteve uns tempos em Los Angeles, infiltrou-se nas festas, assistiu a um concerto privado do Bruce Springsteen. Vive em Madrid há dois anos. Diz que gosta da cidade mas que não ficará aqui muito mais tempo. Tem procurado obter cidadania europeia mas sem sucesso: os papéis dos avós europeus perderam-se.

adenda: soube que, afinal, todos os avós de Jorge eram judeus. Perguntei-lhe se também se sente um. Respondeu que, ainda que não seja crente, cresceu num ambiente de valores judaicos e que alguns deles lhe dizem bastante.

susan sontag

Leibovitz-Susan-at-Home

Annie Leibovitz, Susan at the House on Hedges Lane, 1988

20071106

enganos

O sitemeter, esse panopticon que me faz saber quem lê isto, diz-me que:
a) uma pessoa chegou aqui após pesquisar no google como ornamentar uma festa dos anos 80.
b) pela primeira vez alguém se deu ao trabalho de linkar um post meu, ainda que o motivo para tal tenha sido uma leitura equívoca.
O comum a estes dois factos é o engano. Não deixa de ter uma certa graça, tendo em conta que o blog que me linka tem um título que lembra Vila-Matas.

20071104

compañeros de piso

O maior lugar-comum nas conversas entre estudantes estrangeiros consiste em perguntar ao outro com quem vive. Esta pergunta de aparência inocente oculta uma competição feroz em que todos estamos envolvidos. Aquilo que se busca é descobrir qual dos dialogantes partilha um ambiente doméstico mais heterogéneo. Ninguém o confessa mas todos ambicionam ter os compañeros de piso mais improváveis; e quantos mais forem melhor.
Contudo, tendem a esquecer-se de que não só da proveniência geográfica se alimenta a diferença. E que, além disso, a multiplicidade e variedade nem sempre são simultâneas. Com quem é que eu vivo? Vejamos, com uma mulher hiperactiva que é actriz e bailarina de flamenco, um adolescente perspicaz que toca violino, uma criança indomável que anda de trotineta pela casa e um polivalente músico mexicano. Respondo à pergunta "com quem vives tu?" de modo despreocupado, porque me sinto num campeonato à parte.

20071103

estes dias

Uma agradável visita de Lisboa e um acesso à net intermitente têm-me feito andar afastado destas lides. Em todo o caso posso anunciar que ontem explorei as prateleiras da Casa del Libro ao lado do... Rui Santos. Esse mesmo, o da Sic Notícias.