20071031

chávez e eu

Do escasso que sei da Venezuela uma boa parcela foi adquirida nos últimos dias. Muita informação, pouca de qualidade. A generalidade dos relatos parecem-me demasiado comprometidos e polarizados; vejo dados incongruentes; leio algumas notícias-espectáculo sobre Chávez (soltei uma gargalhada perante o elogio ao modelo social bielorruso); falei recentemente com alguém que esteve de passagem pela parte rica de Caracas - noites faraónicas, carros blindados e dólares a rodos. Socialismo do século XXI ou não, acho sinistro que os meios de comunicação existentes sejam suprimidos em favor de algo análogo a uma “rede de jornalismo cívico”.
Por outro lado as maiorias eleitorais de Chávez têm sido claras e, em toda a parte, o povo deve ser soberano. Fazer o Banco Central depender do governo? Bom, se é isso que entendem ser melhor, força. Etiquetar com o oco epíteto de populista qualquer um que não nos agrade é sinal de preguiça ou de desonestidade. Ignoro até que ponto há uma oposição que constitua uma alternativa competente. E os latino-americanos têm razões para desconfiar dos Estados Unidos: muita merda os gringos fizeram no seu autoproclamado backyard.
É bastante frequente, no que toca a questões políticas, ver-me entalado entre duas (ou mais) partes que me desagradam. Acto contínuo, traslado o problema para uma perspectiva mais gnoseológica que valorativa. Neste caso, um dos meus interesses consiste em saber que oligarquia substituiu a anterior. O Le Monde (não é grátis) fornece algumas pistas. Primeira: Arne Chacón, irmão do ministro, comprou metade do Baninvest, o principal banco de investimento venezuelano. Segunda: Asdrubal Chávez, primo de vocês sabem quem, é vice-presidente da PDVSA, a empresa petrolífera nacional.

a conferência de jesse chacón

A conferência da semana passada desenrolou-se sob uma atmosfera tensa. Doses abundantes de exaltação e maniqueísmo regaram a discussão subsequente. Por partes.
Sala cheia para ouvir Jesse Chacón, ministro venezuelano das Telecomunicações e Informática. Tem a postura deslocada do antigo militar que se vê de fato e gravata rodeado de civis. Junto dele: uma funcionária da embaixada venezuelana em Madrid e dois professores da Faculdade. Um deles, de nome Carlos Fernández Liria, abre as hostilidades. Começa por abordar a ausência de meios de comunicação na sala; saúda depois o carácter democrático da Venezuela e da actual reforma constitucional e contrapõe a situação espanhola onde a monarquia nunca foi referendada. Arrancou a primeira salva de palmas do dia - viriam a ser bastantes, repartidas entre as duas facções presentes. Chacón toma a palavra. Discurso institucional, contextualização dos últimos quinze anos, resumo dos objectivos da reforma da constituição, apresentação de indicadores, todos positivos. À medida que avança, ganha substância. O Banco Central perderá a sua autonomia. Diz Chacón que tal se deve a uma revisão de prioridades: o que importa é a qualidade de vida do povo e não a macroeconomia. Uma citação de Guevara, todos tomam café ou ninguém toma café. Prossegue, nada há de mais político que a economia. Paralelismos com o Chile de Allende. Democracia participativa em detrimento da representação. Substituir os media tradicionais por grupos de cidadãos que produzam a sua própria informação. A recta final é eficaz. O ás de trunfo argumentativo do nosso tempo é a ecologia e Chacón maneja-o habilmente. O mundo pode estar a acabar, afirma, mas há um caminho que o evita: o socialismo do século XXI. Socialismo ou barbárie, termina, para apoteose de mais de quase toda a sala que comunga num longo aplauso.
O debate foi fraco. Três ou quatro venezuelanos intervieram e expressaram o seu descontentamento em relação a Chávez. Que o país está mais inseguro e que a pobreza aumentou, dizem. Que a polícia reprime as manifestações contra o governo. Aplausos, menos do que para o ministro. O tal Fernández Líria, professor e especialista na Venezuela, replica: a esmagadora maioria dos venezuelanos não poderia estudar em Madrid, o que dirá muito sobre o tipo de gente que denigre Chávez. O ministro não desenvolve muito: antes era pior, diz. Que no tempo dele havia mortos nas manifestações estudantis; que há países onde é bem mais perigoso sair à rua que na Venezuela. Que, provavelmente, os manifestantes são estudantes da universidade controlada pela Opus Dei. A audiência aplaude ruidosamente. Alguns espanhóis também participam: um afirma que há que ter em conta o contexto e a estrutura social de cada situação específica antes de proferir sentenças. Outro cumprimenta a revolução e gasta minutos a fio atirando palavras contra o império, os Estados Unidos, isto é. Diz que uns quantos neo-nazis cortaram a electricidade à embaixada cubana e pergunta como teria sido tivessem sido os yankees o alvo. Mais uma participação: não estará a revolução demasiado centrada na figura de Chávez e seu núcleo duro? O ministro responde que enquanto o povo venezuelano o entender o presidente continuará no poder. Alguém pergunta se os homossexuais vão ter direito ao casamento consagrado constitucionalmente. Não sei os números de cor, mas suponho que não haja mais de meia dúzia de países onde tal suceda, o que torna a pergunta um pouco esotérica. Ainda assim recolhe uns quantos aplausos. A última questão veio de um gajo das Honduras; depois de saudar a revolução, colocou a pergunta mais pertinente do dia. Sim senhor, a Venezuela é um país soberano e desenrolam-se lá uma série de processos novos. De acordo, a Venezuela tem uma certa margem de manobra e pode financiar programas de apoio e cooperação com estados amigos. Mas até quando durarão as reservas de petróleo? Que planos há para fomentar a criação de riqueza? O ministro contornou pouco subtilmente a questão e falou do novo satélite que será encarado a partir de uma perspectiva social e que servirá toda a América Latina. O nome é Simon Bolívar. Fim da conferência, ovação geral. Jorge Verstrynge, o incendiário professor que compara Chávez a de Gaulle, sorria em estado de deleite.

20071028

ser emigrante

Vejo o Benfica através de uma transmissão chinesa com um atraso de quatro minutos enquanto despacho garrafas de Mahou.

bom dia

bmglass119

20071027

book of longing

Tenho posts pendentes sobre a conferência do ministro venezuelano, a dinâmica doméstica e outros assuntos. Mas o que hoje me traz é puro exibicionismo. Esta noite vou ao Teatro Albeniz assistir a um concerto do Phlip Glass baseado em poemas e desenhos da fase Zen do Leonard Cohen.

Leonard and I first began talking about a poetry and music collaboration more than six years ago. We met at that time in Los Angeles, and he had with him a manuscript that became the basis of the collection of poetry now published as the Book of Longing. In the course of an afternoon that stretched into the evening, he read virtually the whole book to me. I found the work intensely beautiful, personal, and inspiring. On the spot, I proposed an evening-length work of poetry, music, and image based on this work. Leonard liked my idea, and we agreed to begin. Now, six years later, our stars are in alignment, the book is published, and I have composed the music.

For me, this work is both a departure from past work and a fulfillment of an artistic dream.

-Philip Glass

20071025

fricção fronteiriça

Antón Martín não é uma praça particularmente memorável. Atravessada pela calle Atocha, nela confluem outras ruas de menor dimensão. Passei por lá meia dúzia de vezes, vindo do Reina Sofia (grátis aos sábados à tarde e aos domingos), da Filmoteca (bilhetes a dois euros para estudantes) ou de outros lados. O que mais me desperta a atenção em Antón Martín é que há dois sítios que vendem Döner Kebabs localizados a escassos metros um do outro. Isto pouca relevância teria numa cidade onde talvez haja mais de cem destes estabelecimentos. O curioso é que a placa de um anuncia "Turkish Döner Kebab" e o letreiro de outro ostenta "Döner Kebab from Kurdistan".

Complementos:
The Independent
El País

20071024

revolución bolivariana

Amanhã, quinta-feira, assistirei a uma conferência na minha (já sem aspas nem itálico) faculdade. O orador é Jesse Chacón, ministro venezuelano das Telecomunicações e Informática, que vai falar sobre "Revolución en Venezuela: extensión y profundización de la democracia".
Depois da exposição ministerial seguir-se-á um debate certamente prolixo: a Revolución Bolivariana é acompanhada de perto na Complutense, por estudantes e professores. Muitos dos espanhóis seguem-na de forma apaixonada. Outros criticam-na duramente. Os latino-americanos parecem-me cépticos. Ouvi um venezuelano chamar assassino a Chacón.
Estou também bastante curioso com uma possível intervenção de Jorge Verstrynge. Este pouco ortodoxo professor esteve ligado à extrema-direita francesa (tem dupla nacionalidade); actualmente é marxista e antieuropeísta. Pronunciou-se a favor do fuzilamento de Gorbachov na única aula a que assisti - não posso fazer a sua cadeira, é anual. Classifica-se como ateu mas, pelo sim pelo não, adianta que se houvesse Deus seria preciso fuzilá-lo também. No seu site podemos encontrar um artigo onde traça paralelismos entre de Gaulle e Chávez, entre a V República francesa e a Revolução Bolivariana.
O dia de amanhã vai ser animado, espero conseguir um lugar no auditório.

20071020

animação

Músicos, pintores, palhaços, caricaturistas, artesãos, pessoas-estátua e mágicos conquistaram um lugar nas ruas da cidade moderna. Esta proliferação de gente, ao ocupar os passeios e mostrar os seus dotes, contribui para o alargamento do público das artes, nomeadamente das performativas.
A cena lisboeta de animação de rua é fraca. Nas praças de outras cidades europeias é frequente ver quartetos de cordas; em Lisboa não vamos além dos acordeões. Não deixa de ser sintomático de um país onde a música clássica está pouco enraizada. Em Nova York vi meia dúzia de gajos misturar de forma incrível breakdance e basquetebol. Visitantes e residentes aplaudiam. Em Portugal, esse filão de futebolistas, nunca vi nenhum exibir-se com uma sessão de toques virtuosos perante os turistas. O protagonista mais original é aquele desafortunado cego que palma a linha verde do metro produzindo beats vertiginosos com a bengala. O homem tem talento e uma capacidade rítmica que lhe permite recriar de forma imaginativa o enfadonho "tenham a bondade de me auxiliar". Os punks passés da rua Garret que pedem dinheiro em troca de cinco notas de flauta espelham a concepção lisboeta de performance artística urbana: recompensá-la trata-se de exercer um acto de caridade e não de reconhecer a sua originalidade ou mérito. Numa perspectiva weberiana, esta seria uma atitude mais católica que protestante.
Madrid tem imensos performers. Uma banda de ciganos funde jazz e música balcânica; um homem de fisionomia russa serve-se de copos para interpretar Bach e Tchaikovsky; um anão que praticamente não tem braços, as mãos unindo-se aos ombros, transforma latas em miniaturas de motas; um sorridente negro munido de um soundsystem portátil de karaoke canta com sotaque jamaicano. E depois há os imitadores de estátuas, todos muito bem caracterizados: um Chaplin a preto e branco, uma árvore realista, uma bruxa de nariz adunco, um anjo dourado.
Trabalham quase todos os dias, alguns têm sítios fixos e outros são itinerantes, conhecem-se uns aos outros. O imitador de Chaplin termina a sua jornada quando um par de ciganos vai começar o raide às esplanadas. Cumprimentam-se, conversam um pouco e o acordeonista ensaia uma melodia. Chaplin desforra-se da imobilidade e solta uns desenvoltos passos de dança, fazendo girar a bengala prateada.

20071019

el bosco

A minha amiga Mariana perguntou-me porque é que gosto deste quadro de Bosch. Prometi-lhe um desenvolvimento e aqui vai ele, mesmo que coxo. Apoio-me num livro de Rose-Marie e Rainer Hagen, What great paintings say, editado pela Taschen.
A cena é confusa, um monte de gente em actividades distintas rodeando um carro de feno. Este desloca-se da nossa esquerda para a direita. De um lado, imiscuídos na turba, temos três figuras a cavalo: o papa, o imperador e o príncipe. No outro vemos diabretes e criaturas grotescas que têm corpos híbridos - animais tomados pelo demónio? Estas figuras sinistras puxam o carro e com ele a multidão, que se acotovela numa ganância furiosa. Alguns, vítimas do seu próprio ímpeto, ficam dilacerados entre o veículo e o solo. Falar de deslocação implica falar de tempo; tempo que se encaminha, inelutavelmente, para o Juízo Final. Esta gente peca e segue o destino dos pobres diabos que puxam o carro, o da condenação. Os que parecem alheados da marcha do carro (do tempo) dedicam-se a acções pouco virtuosas: um monge robusto bebe, uma cigana lê a sina, um homem rouba crianças. Mas Bosch não se fica por aqui na acutilância da crítica. Além de denunciar a plebe aponta o dedo aos três poderosos: também eles seguem o mesmo caminho, contemplando apaticamente a situação.
No topo do feno temos um casal beijando-se, um voyeur misterioso, um trio de músicos cuja harmonia é quebrada por um diabrete. Toda esta desordem terrena provoca um distanciamento em relação ao céu. A única figura virada para Jesus é um anjo que, de resto, nem sequer pertence a este mundo.
Uma das coisas que mais aprecio em Bosch, aqui conhecido por El Bosco, é o testemunho que nos deixa do fim de uma época.

a evolução do gosto

Há meia dúzia de anos odiava com todas as minhas forças o Discovery dos Daft Punk e estava convencido de que qualquer um que o apreciasse tinha um gosto duvidoso. Intransigências adolescentes à parte, agora acho-o um grande álbum. Noutro campo, talvez soltasse uma gargalhada se me dissessem que viria a sentir a falta de comer peixe. Mas, raios, apetece-me mesmo trincar um vertebrado aquático (mamíferos excluídos). Uma caldeirada, um arroz de tamboril, uns filetes; peixe cozido não, que o gosto é elástico mas só até certo ponto.

20071015

spiritualized acoustic mainlines

Eu sou um adepto da sonoridade Spiritualizediana. Já passei gordas dezenas de horas a ouvi-la na versão tradicional, a eléctrica. Como tal, adquiri o bilhete para o concerto de sexta-feira assim que cheguei a Madrid. Algumas impressões sobre essa hora e meia, ainda que escrever sobre música não seja o meu forte.
Jason Pierce, ou J. Spaceman, esteve clinicamente morto há dois anos. Assim mesmo, morto, devido a uma pneumonia causada por drogas. Spaceman já anda no rock desde o início dos anos 80, é uma testemunha e uma relíquia de outra época. Mas quis a providência que ele voltasse ao lado de cá: uma história de redenção, como em tantas músicas dos seus Spacemen 3 ou dos posteriores Spiritualized. Jason terá então acordado e percebido que estava vivo; num rasgo de iluminação resolveu ornamentar com novos arranjos as suas eléctricas criações. Suprimiu a distorção, foi buscar um quarteto de cordas e um coro gospel. Baralhou, partiu e deu de novo, enquanto afirmava que se limitava a aprofundar aspectos patentes mesmo nos momentos mais ruidosos. Arqueologia do space-rock? Introspecção solipsista e hermética?
O alinhamento de sexta-feira foi mais homogéneo em termos temáticos que cronológicos: Lord let it rain on me, Walking with Jesus, Lord can you hear me? e quejandos. A relação de Pierce com o sagrado é complexa e a tendência terá sido para se intensificar depois da sua experiência de vida-morte-vida. Mas já desde os anos 80 que vem explorando de modo obsessivo componentes religiosas. Deus, Jesus, almas, ondas e chuvas bíblicas, pecado, redenção, todo este bolo teológico é persistentemente amassado por ele. Também há referências indirectas: na serenidade estóica com que se desprende do mundo e levita rumo aos astros (outra fixação), na forma como se diz flutuar no binómio espaço-tempo, na concepção metafísica dos seus estados de espírito, na caracterização quase divina dos objectos amados. Do ponto de vista técnico, o quarteto de cordas, as cantoras de gospel e o piano estavam bem articulados com a voz de Spaceman e a sua guitarra. Os iniciais guinchos de feedback do microfone foram corrigidos. A atmosfera íntima da sala e o facto de a audiência estar em sintonia foi preponderante; pouco há de mais irritante que aqueles cretinos que não conseguem estar calados e sabotam o deleite a todos os outros. Em síntese, foi um concerto muito bonito e eu cumpri um dos meus desígnios musicais: escutar a Ladies and gentlemen, we're floating in space ao vivo.
A abrir actuou uma dupla de catalães com uma estética, sonora e visual, semelhante à dos Kings of Convenience. Tocaram uma versão do Leonard Cohen, That's no way to say goodbye, e não percebi mais nada porque o resto foi cantado em catalão (que me soava a esperanto). A noite foi encerrada pelos Soulsavers, coadjuvados por Mark Lanegan: guitarras sujas, voz cavernosa e também um par de cantoras gospel. Pareceu-me uma actuação sólida, mas encontrava-me sedado pelo brilho do concerto anterior. Num pico de referências cruzadas, tocaram uma versão de uma faixa dos Spain chamada... Spiritual.

20071013

Hieronymus Bosch, O carro de feno




Gosto muito desta pintura.

20071011

formalidades

Por lapso, os comentários estiveram bloqueados durante uns dias. Já o corrigi.

calle de toledo, 19, (2)

Eu e Jorge, o mexicano, vamos conversando. Sobre o país dele, a Europa, Madrid, esta casa, comida, raparigas. Pergunto-lhe se a oferta amorosa aumenta muito sendo-se músico. Responde que no México, quando tocava numa banda de rock, notava mais isso. Neste momento encontra-se em Frankfurt; acho que está metido numa editora e foi tratar de negócios.
Descobri que o outro Jorge, o filho mais velho de Manuela, toca violino. Assisti a uma exibição sua na cozinha: Bach e algo de sonoridade espanhola que não identifiquei contendo um pizzicato, na minha opinião de leigo, executado de modo muito razoável. O seu irmão, Leonardo, olhava-o embevecido enquanto imitava os seus movimentos com dois palitos.
Manuela gosta de falar comigo. Talvez despejar seja um verbo mais adequado. Há algumas noites, depois de eu chegar, interceptou-me na cozinha e soltou um daqueles suspiros que me obrigou a perguntar o óbvio, se estava cansada. Desata numa série de considerações sobre como a sua vida é uma corrida constante e de como não tem tempo para o que quer que seja e de como os filhos lhe consomem os dias. Tento aligeirar a conversa, pergunto-lhe se a mãe não a costuma ajudar, enfim, ficar com os miúdos quando ela sai. Responde que não, nada disso, que a mãe lhe mói a cabeça, que prefere que a ela esteja longe e não a esteja sempre a vigiar. E conclui, es un poco cabrona, mi madre, ¿sabes?

20071009

in rainbows

Amanhã é lançado o novo álbum dos Radiohead. Chama-se In Rainbows e a versão em mp3 custa o que se quiser pagar, sem intermediários, directamente para a banda. Eu já tenho o meu download reservado. Também é vendida uma versão especial: duplo CD, duplo vinil, livro e uma caixa que me dá arrepios só de imaginar. Essa custa 40 libras, uns 60 euros.

20071008

aproximação à rotina

Ao lado da porta do prédio há uma padaria. Abasteço-me lá pela manhã, não há filas. Volto ao quarto andar, que está anormalmente calmo: Jorge (pequeno) já arrancou para a escola, Manuela, Leonardo e Jorge (grande) dormem. Tomo o pequeno almoço calmamente, a manteiga deslizando sobre o pão, um iogurte pretensamente grego. Zarpo para a faculdade, atravessando uma Plaza Mayor que repousa das hordas de turistas. O metro aqui funciona muito bem e a circulação é bastante fluída, raramente temos de nos acotovelar. Lê-se mais do que em Lisboa, pelo menos a julgar pela amostra captada nos transportes públicos. Fim da linha, Moncloa, onde apanho um autocarro para a faculdade, que fica nos arredores. Costumo demorar cerca de 40 minutos desde o momento em que saio de casa até que chego a Somosaguas. Tenho aulas e há duas que parecem francamente promissoras. Três da tarde, hora de almoço, infiltro-me no eixo franco-alemão; são de lá as pessoas com quem mais tenho falado. Volto para Madrid, Jorge (grande) diz-me que a internet está quase disponível. Vou ao Dia, do outro lado da rua, e faço as compras para a semana. Ofereço-me um tinto de Valdepeñas, está barato. Arrumo as compras, são seis e tal. Estou com falta de t-shirts, atravesso a Puerta del Sol e vou à H&M. Adquiro uma camiseta lisa, castanha, o teu estilo é não ter estilo, costuma dizer-me alguém incisivo nas observações que faz a meu respeito. Vou espreitar livros: todo um novo rol de editoras, colecções, autores desconhecidos, aqui apostam no formato de bolso. Volto ao 19 da calle de Toledo, oito e meia e ninguém em casa, ponho a tocar Miles Davis e trato do jantar. Bifes temperados com pimenta e vinagre balsâmico enquadrados por um arroz de cebola a la N. Não está ninguém em casa e eu aproveito a preciosidade que é esta brecha de sossego, Jorge (grande) não canta, os miúdos não correm, Manuela não grita com eles. Abro a garrafa de Valdepeñas e ataco os bifes.

20071007

"es una casa de locos"

Ontem estive numa casa que corresponde de forma quase exagerada e burlesca ao paradigma do apartamento partilhado por pessoas de países diferentes que ficou celebrizado pelo filme L'auberge espagnole. Treze pessoas de seis ou sete nacionalidades distintas bem no centro da cidade. Viver ali deve raiar por vezes o insuportável. A festa, essa, foi um estrondo.

thursday (como a música dos morphine)

Na noite de quinta-feira dirigia-me para o que era anunciado num e-mail da associação de apoio a estudantes Erasmus (até parece que somos uma espécie ameaçada) como ponto de encontro. Desconfio deste tipo de coisas mas não tinha grandes alternativas, pelo que me fiz à noite. Chovia e não estava assim tanta gente na rua - segundo os padrões madrilenos. Ao passar pelo Populart espreitei o programa e descobri que Roman Feliu ia tocar com Ivan Lewis, um pianista cubano. Feliu é o saxofonista que lidera o sexteto que eu tinha visto actuar há uma semana e de que tinha gostado muito. Fiquei por ali mesmo e valeu a pena: ao passar depois pelo ponto de encontro não me demorei mais que dois minutos, o suficiente para ver uma série de gente reunida de acordo com critérios linguísticos dançando músicas pavorosas dos anos 80.

wifi

A minha mais recente descoberta no que às formas de poupar concerne tem a ver com o acesso à internet. Em casa a instalação está pendente, pelo que até agora recorria aos computadores da faculdade, aos cafés com wifi (que se pronuncia uífí) ou aos locutórios. Mas surgiu uma alternativa: já tinha visto um ou outro utilizador de portátil debaixo das arcadas, em frente ao centro de turismo. Hoje, ao cruzar a Plaza Mayor vi um rapaz a escrever, cheguei-me ao pé dele e confirmei as minhas suspeitas: há uma ligação wireless disponível sob as arcadas, cortesia (provavelmente involuntária) do Patronato de Turismo de Madrid. Há pouco dois chineses que passavam junto de mim sorriram com aprovação e disseram "eso está bien". Não pode haver maior garantia de que se está a usufruir de um bom esquema.

20071005

napoleão e o mercado comum

Marion comenta que há muito espanhóis que parecem não apreciar os franceses. Pergunto-lhe se viu no Prado os quadros de Goya alusivos à invasão de 1808. Diz-me que não é por isso, que é pelos morangos. Pelos morangos? Sim, responde, em 1986, quando os países ibéricos entraram na CEE, fizeram-se bloqueios nas estradas francesas aos camiões que transportavam morangos espanhóis.

20071004

o interior da facultad de cc. políticas y sociología

O interior da Facultad de Ciencias Políticas y Sogiología é uma miscelânea de inscriçoes contestatárias, flyers anarquistas, tarjas de manifestaçoes de protesto: contra a dificuldade em conseguir casa, contra a precaridade laboral, contra a desiguladade de género, contra a presença dos russos na Chechénia . A esmagadora parte dos alunos parece ser de esquerda. À entrada da cafetaria há uma espécie de bar paralelo explorado por pessoal que me parece okupa. Muitos alunos andam de calças de fato de treino de poliéster. Uns quantos punks, alguns rastas. Vêem-se referências institucionais à polémica lei 28/2005, a tal que restringe substancialmente a possibilidade de fumar dentro de espaços fechados, particularmente no interior de edifícios públicos. Nas outras faculdades da Complutense que tive a oportunidade de visitar cumpre-se a lei. Porém, na "minha" ninguém faz caso e quase toda a gente fuma: cigarros, charutos, cigarrilhas, charros. Em espanhol "sala de aula" traduz-se simplesmente por "aula". Nao há uma única em que nao se tenha prefixado, com um marcador ou um corrector, um "J": uma série de jaulas, portanto. A verdade é que a faculdade em si mesma é um sítio fechado, algo claustrofóbico. Nao há qualquer extensao para o ar livre, um pátio, uma esplanada.
Quando nos encontramos, Marion, francesa bonita de sorriso fácil, pronuncia como pode o meu nome (oscila entre Juan, Xuao, Jao) e fala-me entusiasmada da sua aula de Sociologia do Desvio. Numa mistura de espanhol com francês explica-me qual é sítio habitualmente escolhido pelos suicidas madrilenos e diz que a faculdade já foi uma prisao. As lúgubres vigas de betao parecem anuir. Almoço com Marion e outras francesas. Ela pede o último "bocadillo" disponível: calha-se uma sandes de entremeada que ela e as suas compatriotas fitam enjoadas. Tento explicar que entre comer aquilo ou bacon nao há grandes diferenças, mas de nada serve.
Quanto ao académico em sentido estrito, tenho alguns dias para escolher que cadeiras frequentar, pelo que tenho andado em prospecçao.

o edifício da facultad de cc. políticas y sociología

Ontem foi o primeiro dia de aulas. O edifício da faculdade é horrível. Nao ao nível da torre-que-afinal-é-um-livro-aberto da FCSH, o patamar aqui é outro. É um daqueles prédios estilo caixote revestido a tijolos vermelhos. Podia ser um armazém em Manchester.

20071001

calle de toledo, 19 (sem tiles)

Manuela faz teatro e dança flamenco. As estantes dela sao uma mistura curiosa de exemplares da revista "Cadernos Taurinos", ediçoes de clássicos de teatro espanhol e inglês e um ou outro livro de autoajuda. Numa conversa breve, tratou o teatro mais como instrumento ou terapia para a vida cá fora do que como arte em si mesma. Usa maquilhagem a rodos, diz que gosta de beber e de ir a festas. A mae dela vive na porta ao lado, uma mulher de sessenta anos bastante frescos que passa a vida lá em casa. Os miúdos, Jorge e Leonardo, o primeiro treze, o segundo quatro, sao loirissimos. Jorge começa a ser homenzinho. Fala-me com ponderaçao, deixa muito facilmente o ritmo frenético das brincadeiras com o irmao para assumir aquele que lhe parece mais adequado à convivência comigo. Leonardo anda sempre com um arco e umas flechas, disparando-as pela casa, sob o olhar relaxado da sua mae. Ontem, ao abrir a porta do meu quarto, que dá para a cozinha, quase sou trespassado por uma seta sibilante. Respiro fundo e olho para o Leonardo que me diz que é arqueiro. Mais aliviado, assumo ingenuamente que está a ter aulas de tiro ao alvo. Pergunto-lhe onde é que está a aprender e ele responde que viu num filme como se faz. Ando sempre alerta fora dos meus domínios. Esta família feliz vai a musicais e pelo menos um dos seus membros costuma estar a cantarolar ou a assobiar pela casa. Como se isto nao bastasse há ainda outro inquilino: Jorge (outro Jorge), um rapaz pouco mais velho que eu, mexicano, que é músico, canta e toca guitarra. Durante o dia fica trancado no quarto a fazer escalas com a sua voz, que é de facto harmoniosa. Costuma tocar por aí e, tal como Pajaro, participa em gravaçoes alheias para ir ganhando a vida. Dentro de dias tem uma audiçao para actuar num género de espectáculo espanhol que ele me definiu como sendo uma ópera mais popular.
Sinto-me dentro de um argumento do Almodovar.