Este zumbido permanente.
20080127
20080125
leonardo e o tempo
Mostro a Leonardo algumas reproduções de pinturas. Passamos por Hans Baldung. Leo arregala os olhos e abre a boca. Coloca o pequeno indicador sobre a figura da Morte e pergunta-me se é um monstro. Fico sem resposta. É uma imagem enigmática. A sugestão mais imediata é a contraposição entre, por um lado, a vaidade e o culto do efémero e, por outro, a intransigência do tempo e a certeza da morte. Além disso, não há aqui qualquer indício de redenção. Leonardo tem quatro anos e não quero entrar em terrenos pantanosos. Chamo-lhe a atenção para alguns detalhes enquanto penso numa saída para a situação, uma história sobre múmias, qualquer coisa. Então, Leo aponta para a Morte e diz que ela é má. Pergunto-lhe porquê, convencido de que justificará a afirmação com a fealdade da figura. Ele responde que assim que toda a areia ocupar a parte inferior da ampulheta a rapariga do espelho morrerá.
(Esta pintura está no Kunsthistoriches Museum em Viena. O título varia consoante a fonte: As três fases da Vida e a Morte; As três idades da Mulher e a Morte; Beleza e Morte... Na página do museu é identificada como As três idades do Homem)
20080123
"leitura compulsiva"
No meu último post afirmei que os livros me faziam falta. Há pouco descobri que a ana de amsterdam está farta de "leitores compulsivos". Ela tem a capacidade invejável de, com um ou dois parágrafos secos e potentes, despedaçar qualquer chavão. Felizmente, a Ana não passa por aqui.
(Mas, se por acaso passar, fique sabendo que as expressões "leitor compulsivo", "bibliófilo" ou, pior ainda, "bibliómano" também me provocam voltas no estômago.)
20080122
ler
Começo a ressentir-me de não ler por impulso próprio. Aprender umas coisas sobre o sistema eleitoral espanhol, Sheldon Wolin ou a mediação dos quakers no Biafra é interessante, claro. Mas a literatura faz-me falta.
E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez o receio da pulha. É certo que não havia ali nenhuma testemunha externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de lenços velhos ou duas dúzias de goiabas podres. Era tarde; a curiosidade estava aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o embrulho, e vi...
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
20080119
"funny, you like samurai swords... i like baseball"
A man carrying a loaded shotgun, a samurai sword and a bag filled with gunpowder was arrested near the Capitol yesterday, authorities said. (...) He was wearing a vest like those used by police and military personnel and had a bow in his car, said Terrance W. Gainer, Senate sergeant-at-arms.
Um aficionado de Tarantino passeando-se por Washington?
la fiesta va a empezar
Um pouco de política espanhola. O Partido Popular (PP) foi fundado em 1989 tendo como origem a Alianza Popular (AP). A AP formou-se em 1976 e consistia numa federação de partidos liderados por gente do franquismo como Manuel Fraga Iribarne. Os primeiros resultados eleitorais, nas eleições de 1977, foram fracos. A principal formação de direita era a Unión de Centro Democrático (UCD) que tinha à sua frente Adolfo Suárez, o rosto da transição. Em 1977 a UCD conquistou 34,5% dos votos que se traduziram em 47,1% dos assentos parlamentares. Atrás viriam o PSOE (24,4% dos sufrágios) e só depois a AP (8,1%). A UCD beneficiou de um desenho eleitoral feito à sua própria medida, visto ser mais fácil conseguir assentos parlamentares nas províncias rurais, proverbialmente conservadoras. Nas segundas eleições gerais (1979) a AP apresentou-se como Coaligación Democrática mas os resultados pioraram ainda mais. A UCD renovaria a maioria (aumentou-a em um deputado) mas o mandato foi conturbado. Divisões internas terão sido a causa da demissão de Suárez em 1981 à qual se seguiu uma tentativa de golpe militar. Suárez abandonou a UCD e fundou o Centro Democrático y Social (CDS - soa familiar?). Portanto, nas terceiras eleições gerais, as de 1982, apresentaram-se três formações de direita reclamando um mesmo segmento eleitoral: UCD (já a caminho da desagregação), CDS (Suárez tentando recuperar os "seus" votos) e CD (a antiga Alianza Popular procurando aproveitar a crise no quintal vizinho). Mas foi o PSOE que conquistou 40,8% dos votos e a maioria absoluta, seguido pela AP com 26,5% das preferências. A UCD e o CDS tiveram resultados irrisórios. A UCD dissolveu-se e o CDS foi-se aguentando (chegou a ter 10% dos votos em 1986) até ao abandono de Suárez em 1990, altura em que perdeu toda a relevância.
Transformada em maior partido da oposição, a AP absorveu alguns dos destroços da UCD (o Partido Liberal, por exemplo) e adoptou a designação de Coalición Popular. Nas eleições de 1986 manteve o resultado de 1982: um quarto do eleitorado. Fraga ausentou-se do partido após esta derrota para voltar em 1989 e propor a refundação sob o nome de Partido Popular. Uma figura-chave destas movimentações da AP é Jorge Vestrynge, professor na minha actual faculdade, e que com o passar do tempo (esse escultor...) se tornou num incondicional apoiante de Chávez. Constou-me que aconselha o actual governo venezuelano em matéria militar mas não posso confirmá-lo. Vestrynge foi corrido por Fraga do posto de secretário-geral em 1986. Para o seu lugar foi escolhido Alberto Ruiz-Gallardón, actual presidente do município de Madrid. Em 1990 Aznar conquistou a liderança do partido e, em 1996, a presidência do governo. Aí se manteve até 2003 e aos atentados de 11 de Março. A direcção do partido foi desde então ocupada por Mariano Rajoy.
Em Janeiro de 2008 o Partido Popular está de pantanas. Há dias Rajoy reuniu-se com Esperanza Aguirre e Alberto Ruiz-Gallardón. Aguirre é a presidente da Comunidade Autónoma de Madrid e Gallardón, como atrás disse, é o alcade da capital. Aguirre é uma protegida de Aznar enquanto que Gallardón é tido como mais moderado. Ambos disputavam entre si peso e protagonismo no partido. Rajoy reuniu-se com ambos para acertar as contas das listas de candidatos às eleições gerais de Março. Gallardón tinha como certa a sua nomeação como número dois por Madrid; só que Rajoy deu-lhe uma tampa à última da hora perante o sorriso cínico de Aguirre. Gallardón ficou destroçado e fala em abandonar a política. A reconstituição do El País é novelesca:
Atentos a la bronca considerable que se va a armar con ocasión de la elaboración de las listas del PP: el “affaire Gallardon” no es mas que el chupinazo de partida. La fiesta va a empezar.
Adenda: uma frase apagada no primeiro parágrafo.
20080117
but choosing
Há pouco li um ensaio onde me deparei com uma citação lapidar de Milton: reason is but choosing. Eu de Milton nada sei além de que era puritano e que escreveu Paradise Lost, que, como se depreende, não li. A minha memória, que nem é de reter máximas ou postulados, resolveu fixar a dita frase. Pouco depois recebi um e-mail da Vueling:
Como sabemos que eres uno de nuestros fieles seguidores, te lo queremos recompensar. Este fin de semana paga solamente las tasas y cargos y escápate con alguien (o solo) a cualquiera de nuestras ciudades. Vuela este jueves 17, viernes 18 o sábado 19 y vuelve el sábado 19, domingo 20 o el lunes 21. Tienes hasta el viernes para hacer tu reserva.
Poucas seriam as verificações empíricas mais apropriadas à tese de Milton. Por um lado, estou entalado entre prazos e datas de exames. Por outro, tenho a oportunidade de voar a custo praticamente zero a uma série de cidades europeias. O que ditaria a minha razão (ou falta dela)? Comecei a rascunhar interiormente uma viagem-relâmpago de contornos masoquistas a Nápoles, actualmente entupida de lixo. No entanto, não há escolha a fazer. O site da Vueling diz que a promoção "não está activa" e, assim sendo, vejo-me privado de arbítrio. A bem do meu rendimento académico, talvez seja melhor assim.
20080116
20080114
20080113
fim-de-semana no 19 da calle de toledo
11.35 - Acordo estremunhado com o ruído de vozes, a característica mais endémica deste apartamento e desta cidade. Madrid, para mim, é indissociável de um falatório permanente. Pego na toalha e abro a porta. Na cozinha, José e Manuela movem-se em torno de baldes, pincéis, latas de tinta. Pergunto o que se passa e Manuela informa-me que decretou para breve pinturas na cozinha e no meu quarto. Engulo em seco e murmuro algo sobre o cheiro a tinta. Ela insiste, diz que depois de eu partir alugará os meus actuais aposentos a duas pessoas através de uma agência. Tem de estar impecável, explica. Acrescenta com um brilho nos olhos que vai passar a receber mais dinheiro assim. Diz que despacha o meu quarto em duas horas e que eu posso dormir na sala nessa noite.
11.39 - Estacado na cozinha, penso no afã de lucro e no pragamatismo desta mulher. Faço contas de cabeça, restam-me poucas semanas por cá. Não tenho tempo de chegar à antecipação da nostalgia. Leonardo, o pequeno, atira uns interesseiros buenos días e pede-me para jogar computador. Digo-lhe que vou tomar duche mas que, entretanto, ele pode ver desenhos animados.
12.00 - Tenho fome e opto por saltar directamente para o almoço. Frito cogumelos em alho e cozo tortellini. Os olhos arregalados de Leonardo seguem as patifarias de Bugs Bunny.
12.08 - Nieves entra na cozinha e saúda-me. Retribuo e pergunto-lhe pela actualidade espanhola. Desde que voltei a Madrid tenho acompanhado pouco a política de cá. Dispara: o mesmo de sempre, o PP e a Igreja tentam queimar a imagem do governo, o PSOE descredibiliza o PP, andamos nisto há décadas, este país está partido ao meio, metade é de esquerda e a outra de direita, quando uma das metades está no governo a outra não descansa enquanto não a tira de lá, foi assim nas Guerras Civis, já era assim antes, há quatro anos ganhou o PSOE por causa do 11-M, caso contrário teria ganho o PP por três ou quatro votos, é nisto que estamos, João, sempre nisto. Alheio a esta lição de história espanhola contemporânea, Leonardo continua a ver os bonecos.
12.16 - Convenço Leonardo de que o portátil só passa quatro episódios de Bugs Bunny por manhã e enxoto-o para junto da sua mãe.
12.20 - José entra na cozinha. No que a ele diz respeito, tenho mais conjecturas do que certezas. Os dois ou três factos soltos de que me inteirei só o tornam mais intrigante. Uma vez contou-me que passou uma temporada nos arredores de Lisboa em casa da cunhada. Esta, "uma modelo portuguesa", vivia numa "urbanização de luxo". A uns 50 metros, havia um bairro de lata "com tantos negros que te sentias em África". Não que isto tenha amedrontado José, tipo seco e rapidamente adaptável, que ia lá de tempos a tempos. O motivo: visitar "um conhecido" que lhe "vendia umas coisinhas". Hoje, finalmente, descobri algo de mais tangível sobre a vida de José. Esteve uns tempos em em Nova Orleães, voltou de lá deslumbrado e com o projecto de abrir um bar de jazz e blues em Madrid. A coisa corria bem. Música ao vivo, casa sempre cheia, bom ambiente. O problema, afirma José, é que se encheu de gente da televisão. Pessoal muito simpático "mas que nunca paga nada". O bar enchia-se de figuras do espectáculo que iam e vinham com a volatilidade que o estrelato permite. No fim, José acabava as noites sem dinheiro na caixa. Os músicos não estavam para receber em bebidas. Esta é a explicação de José para o fiasco do seu estabelecimento. Actualmente anda em contactos para abrir um novo espaço. Enquanto esse dia não chega, lava a loiça, olha pelos miúdos, vai às compras, faz reparações domésticas.
joão bénard da costa
Hollywood ensinou-nos tanto a beijar como a fumar.
(Público, 6 de Janeiro de 2008)
20080112
foge de casa sem herança
Tenho ouvido de várias bocas relatos pouco animadores acerca do que se vai passando pela FCSH. Não obstante, registe-se uma boa novidade: acesso à JSTOR. Na página da biblioteca pode ler-se que "a FCSH disponibiliza o acesso, a partir dos computadores do seu campus, a diversas bases de dados internacionais de publicações e artigos científicos, muitos deles em texto integral". Quero acreditar que a designação "campus" é aqui usada em sentido sarcástico. Chamar "campus" àquela nesga de terreno entalada entre uma avenida, um hospital e um quartel tem que ser piada.
A propósito disto há um mito que de tempos a tempos ganha consistência para logo ser desacreditado: que a FCSH vai ser "relocalizada", transferida para Campolide ou até para a Caparica (credo). Mesmo sendo improvável que a eventual mudança me venha a afectar, confesso que me custaria ver a faculdade sair da Avenida de Berna. A minha essência de FCSH está concentrada naqueles cem metros quadrados nos quais assenta a esplanada. Mexer nisso seria o fim da faculdade como a conhecemos. Óptimo, dirão alguns, é mesmo isso que se quer. Já eu, admito, estou para este assunto como os indefectíveis da Portela para a questão do novo aeroporto. Permitam-me a chalaça fácil: FCSH na margem sul? Jamais.
20080111
the one and only
O meu blog favorito, o único que li de uma ponta à outra, foi actualizado. Ana de amsterdam voltou.
Ficamos a saber que para o presidente Sarkozy, que veio esta semana anunciar-se, em jeito de messias pateta, arauto de uma política de civilização, que pretende humanizar a sociedade, há homens de primeira e homens de segunda. Espero que quando estiver em cima da Carla Bruni, comendo-a com satisfação e vaidade, um raio lhe fulmine a pila, lhe decepe vários membros e lhe deixe a carranca num estado de monstruosa feiura.
20080109
california dreamin'
Manuela estudou representação em Los Angeles durante um ano. Imaginar o ritmo de vida que levaria causa-me vertigens. Teve um Cadillac - estaban baratísimos, los pijos de Beverly Hills sólo querían deportivos. Tanto que, ao chegar a hora de regressar, não havia modo de vendê-lo. Foi a um bairro negro e conduziu devagar por um bom bocado até que alguém lhe comprou o carro. A los negros sí, a ellos siempre les han gustado los Cadillacs.
20080108
lisboa e o contacto
Metro de Lisboa, linha azul, estação do Marquês de Pombal. Estamos a três dias do Natal e a carruagem transborda. Ela entra, furando, e ficamos quase colados. As nossas pernas tocam-se e o tronco dela está a poucos centímetros do meu. Só então reparo: está a sorrir. Alguém mostrar os dentes no metro de Lisboa é uma raridade mas, cúmulo da estranheza, é a mim que o sorriso é dirigido. De entre a multidão que ocupa o espaço, justamente a mim. Ela, como se notasse o meu cepticismo, reforça o sorriso tornando-o desafiante, quase lascivo. Estamos tão próximos que ela tem de inclinar a cabeça para cima de modo a que os nossos olhares se cruzem. Retribuo o sorriso, um pouco a medo - sou novo nisto de flirts subterrâneos. Do lado dela há uma mudança na expressão, que agora parece mais de troça que outra coisa. Chegamos à estação seguinte, Avenida. Ninguém abandona a carruagem, entram algumas pessoas e a turba acotovela-se ainda mais. Então, sempre sorrindo, ela comprime o corpo contra o meu. Ficamos enroscados e sinto o contorno definido do peito dela.
regresso ao 19 da calle de toledo
Em traços largos, está tudo na mesma no 19 da calle de Toledo. Assim que entrei no prédio a porteira informou-me de que o elevador estava avariado. Pelos Reis, Leonardo, o pequeno, recebeu uma espada e Jorge, o pré-adolescente, uma bicicleta. Manuela acusa Nieves, sua mãe, de lhe estar a copiar o guarda-roupa. A grande novidade doméstica é o gamão. Jorge, o mexicano, ensinou-me a jogar. Diz que é muito popular entre judeus. José, o pai dos miúdos, também entra. Contou-me que em Ibiza jogava a dinheiro. Demasiado, acrescentou.
(Leonardo entrou no meu quarto enquanto escrevia este post - é o único que o faz. Perguntou-me se podia jogar no computador. Respondi que agora não era possível. Quis saber até quanto tinha de contar até que me despachasse. Como só sabe os números até quinze, disse-lhe que tinha de esperar um bocado maior. Encostou-se a mim e já ressona, embalado pelos My Bloody Valentine.)
20080104
20080103
cesário verde
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.