11.35 - Acordo estremunhado com o ruído de vozes, a característica mais endémica deste apartamento e desta cidade. Madrid, para mim, é indissociável de um falatório permanente. Pego na toalha e abro a porta. Na cozinha, José e Manuela movem-se em torno de baldes, pincéis, latas de tinta. Pergunto o que se passa e Manuela informa-me que decretou para breve pinturas na cozinha e no meu quarto. Engulo em seco e murmuro algo sobre o cheiro a tinta. Ela insiste, diz que depois de eu partir alugará os meus actuais aposentos a duas pessoas através de uma agência. Tem de estar impecável, explica. Acrescenta com um brilho nos olhos que vai passar a receber mais dinheiro assim. Diz que despacha o meu quarto em duas horas e que eu posso dormir na sala nessa noite.
11.39 - Estacado na cozinha, penso no afã de lucro e no pragamatismo desta mulher. Faço contas de cabeça, restam-me poucas semanas por cá. Não tenho tempo de chegar à antecipação da nostalgia. Leonardo, o pequeno, atira uns interesseiros buenos días e pede-me para jogar computador. Digo-lhe que vou tomar duche mas que, entretanto, ele pode ver desenhos animados.
12.00 - Tenho fome e opto por saltar directamente para o almoço. Frito cogumelos em alho e cozo tortellini. Os olhos arregalados de Leonardo seguem as patifarias de Bugs Bunny.
12.08 - Nieves entra na cozinha e saúda-me. Retribuo e pergunto-lhe pela actualidade espanhola. Desde que voltei a Madrid tenho acompanhado pouco a política de cá. Dispara: o mesmo de sempre, o PP e a Igreja tentam queimar a imagem do governo, o PSOE descredibiliza o PP, andamos nisto há décadas, este país está partido ao meio, metade é de esquerda e a outra de direita, quando uma das metades está no governo a outra não descansa enquanto não a tira de lá, foi assim nas Guerras Civis, já era assim antes, há quatro anos ganhou o PSOE por causa do 11-M, caso contrário teria ganho o PP por três ou quatro votos, é nisto que estamos, João, sempre nisto. Alheio a esta lição de história espanhola contemporânea, Leonardo continua a ver os bonecos.
12.16 - Convenço Leonardo de que o portátil só passa quatro episódios de Bugs Bunny por manhã e enxoto-o para junto da sua mãe.
12.20 - José entra na cozinha. No que a ele diz respeito, tenho mais conjecturas do que certezas. Os dois ou três factos soltos de que me inteirei só o tornam mais intrigante. Uma vez contou-me que passou uma temporada nos arredores de Lisboa em casa da cunhada. Esta, "uma modelo portuguesa", vivia numa "urbanização de luxo". A uns 50 metros, havia um bairro de lata "com tantos negros que te sentias em África". Não que isto tenha amedrontado José, tipo seco e rapidamente adaptável, que ia lá de tempos a tempos. O motivo: visitar "um conhecido" que lhe "vendia umas coisinhas". Hoje, finalmente, descobri algo de mais tangível sobre a vida de José. Esteve uns tempos em em Nova Orleães, voltou de lá deslumbrado e com o projecto de abrir um bar de jazz e blues em Madrid. A coisa corria bem. Música ao vivo, casa sempre cheia, bom ambiente. O problema, afirma José, é que se encheu de gente da televisão. Pessoal muito simpático "mas que nunca paga nada". O bar enchia-se de figuras do espectáculo que iam e vinham com a volatilidade que o estrelato permite. No fim, José acabava as noites sem dinheiro na caixa. Os músicos não estavam para receber em bebidas. Esta é a explicação de José para o fiasco do seu estabelecimento. Actualmente anda em contactos para abrir um novo espaço. Enquanto esse dia não chega, lava a loiça, olha pelos miúdos, vai às compras, faz reparações domésticas.
20080113
fim-de-semana no 19 da calle de toledo
por joão c. às 20:54
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1 comentário:
Adoro estes relatos, parece que vives em mundo completamente romanesco, quero mais mais mais!
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