Se não aparas essa barba começas a parecer um homem dos anos 70.
20071231
20071230
disto
Com pouco mais de três meses de existência, o entrepontos enfrenta uma quebra de ritmo. Por um lado tenho tido pouco tempo: a sobreposição do regresso com a quadra festiva torna a agenda preenchida. Mais importante, o distanciamento que Madrid me oferece e o exotismo castelhano facilitam a escrita. Estou de visita relâmpago a Aveiro. Amanhã regresso a Lisboa e daqui a uma semana ao 19 da calle de Toledo, ao Campus de Somosaguas e tudo o resto. Na tabacaria de Santa Apolónia comprei o El País em vez do Público.
20071229
20071222
entreposto
Dois dias em Lisboa. Perguntam-me que tal me parece a cidade, como é estar aqui depois dos meses em Madrid. Dou respostas vagas, sinto o discurso e o raciocínio entorpecidos. Tenho dormido pouco nos últimos tempos e estou cansado. Dentro de sete horas apanho um avião para o Faial. Depois, se o mar o permitir, um barco para o Pico. Do meio do Atlântico chegam relatos de neve na montanha.
20071219
leonardo e o natal
Leonardo chora, destroçado. Amanhã há uma representação do nascimento de Jesus no infantário e faz questão de ir vestido de ninja.
cenário
Johnny Cash a tocar A boy named Sue na prisão de San Quentin em 1969.
Há um conceito que me foi transmitido por um amigo: ter cenário. Todos podermos viver momentos de relativo cenário, mas aqueles que estão envoltos por uma aura permanente são raros. Tem-se cenário devido a uma combinação muito precisa de atitude e estética. Não é o mesmo que ter estilo; o cenário exige um traço próprio, algo marcadamente pessoal e a aparência não basta. A ideia weberiana de liderança carismática assenta bem na definição de cenário. Alguns exemplos, entre homens e mulheres, entre estrelas, personagens fictícias e gente menos distante: o Jack Nicholson, o Tom Waits, o Coronel Aureliano Buendía, a Susan Sontag, a Marla Singer, uma dada rapariga que estuda filosofia na FCSH. O vídeo acima são três minutos e sete segundos de puro cenário. Para o comprovar basta ir observando as expressões dos reclusos.
20071216
a rapariga de istambul (2)
Josefina, leitora habitual e exigente, desmontou a eventual recordação de uma rapariga de Istambul como sendo fruto de um "vulgar cliché". A minha reminiscência seria uma manifestação da imagem vaga de um Oriente idealizado. É provável que tenha razão: Istambul é o portal dessa vastidão onde espaço e tempo vão mudando de contornos. A rapariga de Istambul podia bem ser a rapariga de Beirute, Teerão, Goa, Singapura, Xangai. Uma ínfima fracção desse desconhecido que se estende do Bósforo ao Pacífico.
No entanto, prossegui as minhas pesquisas e surgiu uma nova figura: M. G. Braun, escritor francês de policiais e romances de espionagem. Segundo a wikipédia, escreveu 171 livros entre 1954 e 1984 - um lançamento a cada dois meses. Na amazon, tanto francesa como americana, as obras deste prolixo autor só estão disponíveis em segunda mão. Uma delas é Pas de bonheur pour Spyros, editado na colecção Espionnage das edições Fleur Noire em 1959. Este livro foi traduzido para inglês e editado sob o título That girl from Istanbul.
20071214
ah!
Breaking News 12/13/07: RAGE AGAINST THE MACHINE CONFIRM PORTUGAL
Good evening, we're Rage Against the Machine from Los Angeles, California.
20071213
a rapariga de istambul
Conheci uma turca muito bonita. É de Istambul. A expressão"rapariga de Istambul" soa-me familiar. Algo que estivesse armazenado e fosse reactivado agora, um nome de filme, de conto, de música. É isso, parece um título dos Mão Morta. Pesquisei no google, não há resultados. A rapariga de Istambul. De onde é que isto veio?
sugestão
A colecção de bolso do triunvirato Cotovia-Assírio-Relógio d'Água está a crescer a bom ritmo. Há ali alguns livros que me são queridos. Os únicos clássicos russo-ucranianos que li: os Contos de São Petersburgo de Gogol e O Jogador de Dostoievski. Duas recentes ficções em língua portuguesa que nos levam a dois Orientes muito distintos: Estranho em Goa de José Eduardo Agualusa e Mongólia de Bernardo Carvalho. O da Selma Lagerlöf, uma bonita viagem por paisagens e mitos suecos. O do Ortega y Gasset, uma iniciação adequada à minha condição de leigo em matérias filosóficas. Também há Pessoa e Sá-Carneiro.
De Homero li a Odisseia mas é A Ilíada, que ainda não conheço, que está na lista de títulos. Depois há outros clássicos com que não contactei: Shakespeare, Baudelaire, Freud, Woolf.
Mas o que mais me saltou à vista foi a inclusão das Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Esta obra é a minha sugestão de oferta natalícia. É um livro do caraças e começa assim:
AO LEITOR
QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas20071211
"colectivo autoral"
Artigo de Celso Martins no Actual (Expresso) desta semana.
«A Quinta do Gato Cinzento»
UMA FICÇÃO assistida pela realidade. Assim se podia definir esta exposição de um colectivo autoral de alunos finalistas da FBAUL que aproveitou a história de uma quinta devoluta perto de Peniche que pertenceu a um filho do magnata do cinema Jack Warner, casado com a estrela de cinema Loretta Young. Pelas várias salas do Palácio de Valadares espalham-se diversos vestígios (papagaios, cães, um jogo), pistas que culminam num filme que ficciona uma história da quinta onde cabem o «glamour» hollywoodesco mas também o contrabando. Funcionando como uma subjectiva transferência da memória de um espaço para outro e aproveitando a intercepção da história dos dois espaços, «A Quinta do Gato Cinzento» é um pretexto muito bem encontrado para explorar zonas de fronteira entre noções como ficção, memória e documentário.
20071210
20071209
humor metodológico
Um artigo chato com uma citação fantástica:
The final flaw in the J-curve hypothesis is that Davies' method of scanning the prerevolutionary period for signs of frustrated expectations is bound to identify as crucial for revolution circumstances that are in fact commonplace outside of revolutionary situations - "as with the famed methodologist who achieved a hangover with bourbon and water, Scotch and water, not to mention rye and water, and therefore stopped drinking the offending substance: water." How to distinguish frustrations that lead to revolution from those that form the grist of political continuity, Davies never tells us.
arroz três delícias
Levanto-me com vontade de comer arroz, mas o meu stock caseiro está a zeros. Tomo um duche, desço os quatro andares e acho-me em pleno rebuliço. A calle de Toledo, ligação entre a Plaza Mayor e o Rastro, está intransitável nestes domingos que antecedem o Natal. Vêem-se imensas cabeças cobertas com uns gorros que reproduzem focinhos e hastes de renas. Enfio-me pela Concepción Jerónima e respiro de alívio por me soltar do magote. A temperatura subiu um pouco, é um bom dia para andar pela cidade.
Onde encontrar arroz? Penso nos turcos e curdos de Lavapiés e para lá me encaminho. À medida que vou passando pelos restaurantes, dou-me conta de que quero arroz como prato principal e não como simples acompanhamento. Há já quatro dias que não como o polivalente cereal. Os kebabs e pedaços de frango enquadrados por míseras porções de arroz não me atraem hoje. A fome vai aumentando, o meu estômago começa a queixar-se. Estou quase a chegar ao Reina Sofia e com poucos cenários montados. Passo por restaurantes espanhóis onde podia comer uma paelha mas não me apetece gastar muito. Subo, macambúzio, a Calle de Santa Isabel quando reparo num vidro escuro e sujo onde estão anunciados pratos baratos. Entre eles encontra-se uma paelha ao preço da chuva. Triunfante, entro no sítio, escuro e abafado. Está a meio caminho entre uma churrasqueira castelhana chunga e um restaurante chinês clandestino. Calendários kitsch com pandas e uma televisão ligada na Telemadrid. Três velhos bebem cervejas, dois miúdos brincam e, atrás do balcão, um chinês circunspecto avalia-me. Pergunto-lhe pela paelha, diz que não há. Tem algum arroz? Tlés delícias, responde. Venha ele. Grita, na sua língua, "arroz três delícias" para a mulher que está na cozinha.
Futebol à parte, não vi nada na televisão ao longo dos últimos meses; assisto ao Gato Fedorento, mas pelo computador. O programa que está a dar chama-se "Moda Real". A ideia é interceptar pessoas na rua e pedir-lhes que descrevam o que têm vestido, onde o compraram, por que razão e por quanto. Vejo três depoimentos até que chega o meu prato devidamente ocupado por uma montanha de arroz. Peço água à mulher e ela traz-me um copo em vez de uma garrafa. Gosto da água canalizada de Madrid. O arroz está saboroso, tem boa consistência, bocados de fiambre gordos e uma nota ao fundo surpreendentemente delicada. O homem que está sentado na mesa da frente tem um gigantesco ataque de catarro que serve de banda sonora ao meu almoço.
Termino a refeição, satisfeito. Levo a loiça para o balcão e a mulher, que tomou o lugar do homem, sorri-me e diz glacias. Passo-lhe dez euros e ela devolve-me sete e meio, o que concede a esta tasca, provavelmente, o título de lugar mais barato de Madrid.
tancredi
Os meus contactos com a ópera devo-os a um tio especial que conseguiu subtrair a minha fobia ao género. Um mérito pelo qual lhe estou grato e que não foi mais amplo por falta de disponibilidade minha. Sobre ópera sei muito pouco e, se me fosse pedido para defini-la, arriscaria a seguinte frase: um encontro promíscuo entre música, teatro, dança e mito. A música que mais me enche é aquela que se apreende apenas com a audição e a ópera é outra coisa.
Soube (modéstia à parte, sou bom a inteirar-me destas coisas), que o Teatro Real vende os bilhetes disponíveis antes do início dos espectáculos com 90% de desconto. Só pode beneficiar disto quem ainda não chegou aos vinte e sete anos. O melhor de ser jovem não é a liberdade, a ingenuidade ou todos os lugares-comuns que se apregoam como estando associados a esta fase da vida. Nada disso: são estas borlas.
E assim fui eu assistir a Tancredi de Rossini. Senti que ocupar uma cadeira de 145 (!) euros merecia mais do que um dos meus casacos de capuz e vesti uma camisa pela primeira vez desde que cheguei a Madrid. O Teatro Real é a sala de espectáculos mais imponente onde já estive. O adjectivo que me vem à cabeça é "majestático". Na página oficial é dada uma ideia do espaço.
Escrita a partir de uma peça homónima de Voltaire, Tancredi é um mellodrama eroico que tem a particularidade de ter dois finais distintos, ambos legados por Rossini: na versão de Veneza, mais ligeira e de acordo com o padrão de gosto vigente na época, Tancredi sobrevive; na versão de Ferrara, mais consonante com o original de Voltaire, o herói morre. Escolhi assistir a esta última sem pestanejar: a tragédia seduz-me.
Não me desiludi. Ao longo dos seus dois actos, a obra é de uma tristeza solene e exacerbada, adornada por uma plêiade de alusões a valores revolucionários e patrióticos. O pano de fundo é a união da até então dividida Siracusa frente a um inimigo comum, o sarraceno Solimar. O fio condutor da acção é uma traição inexistente. Amenaide é acusada pelo seu pai, pelo seu amado Tancredi e pela sua pátria de estar envolvida com o inimigo. Em vão tenta clamar a sua inocência; na versão de Ferrara, Tancredi só se inteira da verdade já moribundo. Deixa a vida depois de derrotar Solimar e consciente da fidelidade de Amenaide; uma morte, sim, mas uma morte heróica, faz-nos crer Rossini. Quem estiver interessado numa sinopse mais completa pode consultar o allmusic.
A Orquestra Sinfónica de Madrid pareceu-me estar bem, sem ser arrebatadora. Como disse, não estou habituado a ouvir cantores líricos, mas as vozes deliciaram-me. A personagem de Tancredi era interpretada por uma mulher, Ewa Podlés, uma contralto que sobressaiu aos demais.
20071207
dinâmica familiar no 19 da calle de toledo
A típica noite de Manuela é passada com os miúdos em frente à televisão, os olhos seguindo distraidamente o previsível enredo de um qualquer filme de desenhos animados. De quando em quando, Manuela sai para o emaranhado das ruas e junta-se à boémia dos actores. São noites animadas: ela cresceu entre Madrid, Sevilha e Marrocos, e imagino que tal tenha contribuído para o seu forte sentido de rua. As manhãs seguintes são de invariável ressaca e exibicionismo garantido. Há tempos anunciava, triunfante, o seu convívio com a mãe de Javier Bardem, também ela actriz.
No que concerne à ordem doméstica, eu e Jorge, o mexicano, gozamos de um regime comparável ao de judeus e cristãos na altura dos califados: desde que paguemos o tributo e não levantemos demasiadas ondas, estamos à vontade. Quanto ao resto, Manuela dirige esta casa e os seus filhos de um modo que oscila entre o despótico e o anárquico. O fio condutor desta convivência familiar é uma ternura mais que latente, um afecto que atinge proporções inusitadas. Leonardo, o de quatro anos, não consegue estar afastado da mãe - literalmente. Jorge, o de treze, tem no quarto uma foto de Manuela grávida. Algo corriqueiro, não estivesse ela nua. Berros de Manuela, respostas tortas de Jorge e crises de choro de Leonardo opõem-se a doces diminutivos e muitos beijos.
De vez em quando, José, o pai dos miúdos, passa por cá. Sempre vestido de preto e com botas de pele, voz grave e aspecto de estrela decadente do rock espanhol. Saúda-me sempre com um sintético qué? em vez do tradicional qué tal? Não é claro que tipo de relação o une a Manuela: a imagem de independência feroz dela dilui-se um pouco quando ele passa tardes (e noites) por aqui.