Chego a casa depois de mais um concerto no Populart. Cinco meses volvidos em Madrid e as últimas noites são idênticas às primeiras. O jazz, as suas escalas improváveis, a cumplicidade entre o contrabaixo e a bateria, o saxofone voando baixinho. Há diferenças, claro. Os primeiros tempos foram solitários. Ao fim destes meses acabei por conhecer gente e fazer amigos. Hoje assisti ao concerto acompanhado. Mas o gregarismo contínuo cansa-me e preferi ir várias vezes sozinho ao Populart, ao Prado ou à Filmoteca. Ainda assim, a minha vida tornou-se progressivamente menos isolada. Escrevi pouco ou nada sobre esta gente de quem me aproximei. Não o farei agora, porque despejar nomes de pessoas que aos leitores nada dirão é pouco menos que inútil.
Já em relação aos meus companheiros de casa a opção foi outra. De resto, sei que lhes devo uma boa parte da audiência do entrepontos. Manuela, José, Jorge e Leonardo cá ficarão. Na minha memória guardo muitos episódios do 19 da Calle de Toledo que não partilhei. Às vezes por falta de tempo, outras de engenho, outras de certeza quanto à legitimidade de expor assim as vidas desta gente. O caso de Jorge, o mexicano, é exemplar: à medida que nos fomos aproximando constatei que não me parecia correcto transcrever as nossas conversas. E então suprimi-o. Um resumo meramente espacial: ao longo de Janeiro e Fevereiro, Jorge foi a Israel, mudou de casa e zarpou para um mês no México e Las Vegas. Foi porventura a amizade mais sólida que criei em Madrid.
Estabeleci uma grande cumplicidade com Leonardo. Suponho que a espinha dorsal desta relação tenha sido a facilidade de comunicação. Leonardo adapta-se muito depressa às circunstâncias e rapidamente arranja esquemas de modo a conseguir o que quer. Cria narrativas e alter-egos que fazem lembrar o Calvin. Se diz sentir algum perigo no ar, fantasmas rondando a casa, veste-se como um ninja e destrói os maus espíritos à espadeirada. Se lhe apetece comer um dos meus chocolates argumenta que precisa de energia para ser capaz de me proteger dos monstros que andam pelo quarto. Claro que na maior parte das vezes os esquemas têm como único fim conseguir jogar no computador. Mas mesmo nisso nos demos bem: em jogos de plataformas, eu ficava com as direcções e ele com os ataques ou os saltos. Se jogávamos flippers, ele ficava com o esquerdo e eu com o direito. À medida que fazíamos pontuações máximas ensinei-o a escrever os nossos nomes e outras palavras no teclado. Pelo que me é dado a conhecer de miúdos, Leonardo conjuga a tal rapidez de adaptação com uma inteligência e uma memória pouco comuns. Mesmo que passe dias sem escrever nada, tem uma ideia da zona do teclado onde está cada tecla. Ontem ofereceu-me um dos seus bonitos desenhos. Aos quatro anos e meio, Leonardo tem maior capacidade artística que eu aos vinte e um. Na folha, totalmente preenchida de cores, vê-se a forma de uma pirâmide situada num vale. Leo explicou-me que era o Egipto e que mo ofereceu para que eu nunca esqueça que as múmias existem.
Amanhã apanho o A320 da Vueling e comigo levo dezenas de quilos de bagagem. Parte significativa desta carga são livros, muitos deles comprados por cá. Os livros são a expressão mais visível do meu consumismo. E é isto. Não sou pessoa de extrair morais e projectá-las depois de modo grandiloquente. Se tirei conclusões destes meses, elas ficarão para mim. A agenda do meu telemóvel espanhol não tem nenhuma “casa”. Achei mais apropriado registar uma entrada como “Lisboa” e outra como “Toledo”. Estou triste por me ir embora, gostava de cá passar mais tempo. E com esta frase acabo de arruinar a minha tentativa de fazer um texto frio, solto e sem lamechices.
20080228
madrid
josé
José está abaixo de teso. Os seus tempos gloriosos de empresário da noite são cada vez mais remotos; agora encontra-se metido em vários esquemas a tentar ganhar alguma coisa. Hoje enquanto batia ovos, punha azeite numa frigideira e temperava bifes disse-me joder, tío, que hoy tengo ganas de matar a la mitad, vamos, a tres cuartos de Madrid.
Depois de jantar, Leonardo decretou que queria ver desenhos animados. José disse que não, já eram horas de dormir. Leonardo replicou que nesta casa era ele o chefe. José olhou-o desencantado e corroborou: tienes razón, en esta casa manda el hijo, la madre, el espíritu santo... El padre es el único que no manda nada.
20080226
facultad de ciencias políticas y sociología
Hoje tratei das últimas burocracias administrativas na Complutense. Foram uns meses bem passados. Tive bons professores, aprendi bastante e tornei-me amigo de meia dúzia de pessoas. Também foi curioso estudar numa faculdade tão radicalmente politizada. Venho da FCSH, uma instituição que conserva, ainda que de modo minguante, uma mística de insurreição esquerdista. Se a Nova já me parecia calma, depois deste semestre acho-a subserviente. O ambiente na Complutense atinge níveis de crispação PRECquianos.
O contexto do vídeo abaixo: Rosa Díez saiu recentemente do PSOE para fundar um novo partido, o Unión, Progreso y Democracia. Como se pode ler na apresentação do site, esta formação procura superar o "bipartidismo imperfeito" do sistema político espanhol. Um dos seus baluartes é contrariar o "abandono da coesão nacional" que está a ser levado a cabo para satisfazer o nacionalismo e as suas imitações regionalistas".
Esta posição enfurece muitos daqueles que foram meus colegas ao longo dos últimos meses que se acharam no direito (na obrigação!) de boicotar uma conferência de Rosa Díez. Ocupações de salas, interrupções de aulas e ruidosas marchas pelos corredores são métodos habituais de acção estudantil. O tom dos cartazes e dos gritos de ordem chega ao apocalíptico e ao maniqueísta. Fala-se muito em "assembleias abertas", "democracia participativa", "combate ao fascismo" e "fim da repressão". Reina um discurso de isolamento que raia o paranóico. A faculdade torna-se, como a aldeia de Astérix, o único foco de resistência ao invasor. "Fascistas fora de la Universidad", gritavam uns quantos que procuraram impedir a participação de Díez. A polícia veio até à porta proteger a saída da líder da UPD. "Policias asesinos, perros del capital" é, por sinal, uma das mensagens mais espalhadas pelas paredes do edifício.
toledo (2)
Then he might manage a journey to Spain. He wanted to see the pictures which he knew only from photographs; he felt deeply that El Greco held a secret of peculiar moment to him; and he fancied that in Toledo he would surely find it out.
(Somerset Maugham, Of Human Bondage)
toledo
Hoje passei algumas horas em Toledo. Sendo segunda-feira, muitos dos pontos de interesse estavam fechados. A maior parte do tempo foi passada a caminhar ao acaso por becos e ruelas. Ainda assim, visitou-se a igreja de São Tomé onde está o Enterro do Conde de Orgaz, pintado por El Greco, bem como a sinagoga de Santa Maria la Blanca. Ouvi a responsável por um centro de cultura judaica afirmar que gostava de Toledo por lhe fazer lembrar Jerusalém.
Ao almoço comi um primeiro prato de feijão branco com chouriço. Uma espécie de dobrada mais ligeira. (E não é que também veio fria?) De segundo, duas codornizes assadas boiando num molho com especiarias. Eu e o meu comparsa despachámos a meias uma garrafa de vinho e as ruas, já de si inclinadas, pareceram ainda mais íngremes depois do repasto.
Visitar esta cidade à beira do Tejo era uma vontade até hoje adiada. O tempo foi manifestamente pouco mas serviu como introdução. E ainda comprei uma espada de plástico para oferecer ao Leonardo.
20080222
sevilha
Visitei Sevilha por capricho de uma moeda lançada ao ar. Granada, a alternativa, ficará para depois. Em AVE (o serviço ferroviário de alta velocidade) a distância cumpre-se em duas horas e por 70 euros; pela estrada a viagem leva o triplo do tempo mas custa um terço. E assim fomos num autocarro que cortou paulatinamente o sul da península. Um monitor mostrava maus filmes americanos sem legendas; uns quantos passageiros, incluindo Josephine, dormiam. A planície renovava-se monotonamente e eu ia olhando pela janela. A dada altura, sem que houvesse outra construção nas imediações, passámos por um edifício baixo. Viam-se palavras em árabe inscritas nas paredes e homens com barba vestidos de branco sentados nos degraus.
O tipo de charme de Sevilha é diferente daqueles que tinha conhecido até hoje. A cidade não é de fácil apreensão. Há muitos séculos de história e uns quantos mitos associados. Don Juan, Carmen e Fígaro são figuras de quem sempre ouvi falar e de quem sei pouco além do rudimentar. Mas havia outras personagens sevilhanas que me eram desconhecidas: veja-se a história de Santa Justa e Santa Rufina, as primeiras mártires cristãs da península e padroeiras de Sevilha. Ambas foram condenadas no século III por destruir uma imagem de Vénus. Justa pereceu antes de Rufina. A esta arrancaram-lhe as unhas atiraram-na aos leões. As feras, em vez de devorá-la, lamberam-lhe as feridas docilmente. Velázquez pintou uma Santa Rufina que eu encontrei no Bairro de Santa Cruz.
A forte impressão causada por Sevilha é ampliada por uma história de tensões entre dominantes e minoritários, mártires e carrascos, invasores e conquistados. O resultado arquitectónico, já se sabe, é único. A mesquita foi arrasada (excepto a torre da Giralda e o pátio das laranjeiras) e deu lugar a uma catedral de dimensões inusitadas. Sevilha é sinestésica: cidade de becos, de odor citrino e de chilreadas. Verdejantes pátios exibem-se perante quem os queira ver. A parte gastronómica também foi proveitosa. Pedaços de fígado grelhados e cogumelos afogados em azeite, espinafres salteados com grão e lagostins panados.
As minhas últimas horas em Sevilha passei-as no Alcázar. Os jardins conservam a traça árabe e misturam-na com outras escolas. A manhã estava amena, os visitantes não eram muitos e o silêncio era contrariado apenas pelos pássaros. Josephine saltou para as minhas cavalitas e fizemos um slalom entre turistas nórdicos de meia-idade.
20080221
malito (2)
Posso voltar a afirmar a alto e bom som que nunca fico doente. Depois de uma noite em que dormi da meia noite e meia às três e das quatro e meia às onze, acordei fresco e com poucos vestígios de mal-estar.
20080220
malito
Ao longo dos passados onze dias antecipei o retorno à comunicação oral em português. Hoje, primeira manhã após dizer adeus a Josephine, acordei com a cabeça cheia de palavrões castelhanos e, parece-me, um ou outro mexicano. Levantei-me, resmungando (já em português) contra o caos deste quarto e a escassez das horas de sono, rasgando folhas de jornal com os pés enquanto procurava o interruptor do candeeiro. Foi depois de cumprir esta tarefa que percebi que me sentia mal.
follón
Hoje passei seis horas num autocarro que me trouxe de regresso a Madrid. Sei que tenho andado desleixado no que ao blog diz respeito e esta foi uma boa oportunidade para finalmente organizar ideias, esboçar posts. Cheguei ao 19 da calle de Toledo cansado mas com espírito para enfrentar o teclado. Ao entrar no meu quarto encontrei-o em estado de sítio. A cama está deslocada, há folhas de jornais no chão, a carpete encostada à parede: tudo por causa das pinturas. José ficou lívido quando me viu. Joder tío, pensaba que volvias mañana. Atendendo às circunstâncias, a escrita fica adiada mais um dia.
20080209
20080208
desaparição (existencialismo barato)
Ontem entrei na casa-de-banho, o mais recente cenário da actual fúria reformadora de Manuela que encontra em José mão-de-obra grátis. Peguei na escova, pus-lhe pasta, abri a torneira e olhei em frente. O espelho tinha sido retirado. Em vez da minha cara encontrei frios azulejos brancos.
Há aquele episódio da Aparição no qual Alberto, quando pequeno, se descobre a si mesmo reflectido no espelho, a aparição fulminante de mim a mim próprio. Eu, pobre simplório, deixei-me surpreender pela minha ausência.
20080201
tony judt
We are losing the capacity to distinguish between the normal sins and follies of mankind—stupidity, prejudice, opportunism, demagogy, and fanaticism —and genuine evil.
New York Review of Books.