Sexta-feira santa, cansado da inércia doméstica, saio. Em Madrid passar a porta do prédio equivalia a diluir-me num magote. Hoje, nesta pacata zona de classe média-alta, não me cruzo com ninguém excepto algumas esvoaçantes gaivotas, sinal de mau tempo no rio. Apanho o metro e mergulho nas desventuras de Madame Bovary. O destino é vago; quero um sítio onde possa ler. A apneia flaubertiana é curta, vinte minutos e saio no Rossio. Para os lados das Portas de Santo Antão muitas dezenas de muçulmanos conversam animadamente. São escrutinados pelo olhar pós-imperial de ingleses afundados em canecas de cerveja.
É feriado e calculo que haja uns quantos cafés fechados. Opto por um lugar habitual perto do Carmo e sento-me no pátio interior. Entro de novo em Flaubert e lá me deixo ficar. Até que o ruído aumenta e a minha leitura é perturbada por uma conversa sobre decoração de interiores. Olho em redor: andam todos pelos trinta anos e procuram passar a imagem de um estilo casual. São vendedores imobiliários, designers de logótipos e gestores de risco, tudo ofícios dignos e interessantes. O que me incomoda é estar enfiado no meio de uma corja de yuppies. Pago e saio, mastigando uma zanga de alvo difuso. Sopra um vento frio e o entardecer avança veloz. Desisto de ler e resolvo perseguir uma boa panorâmica do pôr-do-sol. Um desígnio piroso que justifico com a minha recente chegada a Lisboa.
Desço o Chiado, cruzo a Rua da Vitória, subo na direcção de Alfama, faço becos com nomes de santos e nobres a caminho da Costa do Castelo. Apetece-me andar e faço um trajecto intrincado e pouco directo. Uns espanhóis pedem-me indicações e eu aproveito para soltar o castelhano do seu encarceramento. Contorno as muralhas, acelero até à Graça e chego ao miradouro a tempo de apanhar a parte final da rota solar. Uma pequena multidão de turistas tira fotografias e alguém tenta tocar a Hey Joe do Jimi Hendrix com uma guitarra acústica. Gosto dos jogos de espelhos que Lisboa permite: no miradouro de São Pedro de Alcântara, na colina do lado de lá, alguém há-de estar a mirar na nossa direcção. O sol some-se e a temperatura desce.
Enterro as mãos nos bolsos das calças e desço pelo Caracol da Graça até à Mouraria. Uns quantos encapuzados abanam o pescoço ao ritmo de kizomba. Oiço um brasileiro lamentar-se: tem documentos retidos na embaixada porque vinham em nome de Luiz e não de Luís. Chego ao Martim Moniz e penetro no piso subterrâneo do caleidoscópico centro comercial. Os indianos fecham as mercearias e uma família de ciganos negoceia com um revendedor chinês. Apanho o metro de volta à minha tranquila zona residencial.
20080323
entardecer
20080320
cem por cento nacional
Tiro do congelador umas costeletas de porco embaladas. O pacote ostenta um autocolante com uma bandeira portuguesa debaixo da qual se lê um orgulhoso 100% nacional- nascido, criado, alimentado, abatido e desmanchado em Portugal. Na minha cabeça forma-se a imagem de um robusto e irascível suíno luso, um nobre animal de ascendências longínquas. A carne dos seus antepassados era salgada para depois alimentar os marinheiros na época dos Descobrimentos; Nuno Álvares Pereira celebrou o triunfo de Aljubarrota comendo o lombo de um membro desta linhagem. E aqui estou eu, gerações e séculos volvidos, resistindo à tentação do indecoroso e sabujo porco castelhano, prestes a cozinhar uma parte do distinto e venerável animal português.
s. (1)
Conheci-a numa festa de franceses: as pessoas, o estilo delas, a música que se ouvia e aquele modo particular de se ficar bêbedo. Ela, vinda de Sevilha, e eu, deste rectângulo entalado entre Espanha e o Atlântico, éramos as excepções àquela homogeneidade. Saímos juntos três ou quatro vezes, as suficientes para que ela partilhasse comigo os seus problemas: a anorexia, os infelizes anos do colégio, as infidelidades da mãe, o esgotamento do pai, a promiscuidade das irmãs, o ambiente fechado da aristocracia andaluza. Não se limitava à comiseração. Falava-me também dos passeios pelo Mediterrâneo no iate do pai e dos livros de Javier Marías.
20080314
a cidade e as serras
E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a Jacinto se aparecia à noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um «não, parto para o sul...» que mal lhe passou de entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e da História Romana!... Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus, pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo! -O Cristo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da Guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas, todos nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso esse -Agripina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva todas as formas de Madame de Malbe... Enfim colossal, e estupendamente instrutivo!
Acenámos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e fortes. Depois, em frente ao Arco de Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:
-É muito grave, deixar a Europa!
(Eça de Queiroz)
20080310
malito (3)
Estou constipado há duas semanas. Não me dói a cabeça nem tenho a garganta arranhada, sou só vítima de um contínuo acumular de lixo biológico no nariz. Esta ocorrência contraria a minha pretensão de ser imune a isso a que se chama doenças.
20080308
la trama
Um pequeno conto de Jorge Luis Borges chamado "La trama" que talvez agrade à malta da Trama:
« Para que su horror sea perfecto, César, acosado al pie de la estatua por lo impacientes puñales de sus amigos, descubre entre las caras y los aceros la de Marco Bruto, su protegido, acaso su hijo, y ya no se defiende y exclama: ¡Tú también, hijo mío! Shakespeare y Quevedo recogen el patético grito.
Al destino le agradan las repeticiones, las variantes, las simetrías; diecinueve siglos después, en el sur de la provincia de Buenos Aires, un gaucho es agredido por otros gauchos y, al caer, reconoce a un ahijado suyo y le dice con mansa reconvención y lenta sorpresa (estas palabras hay que oírlas, no leerlas): ¡Pero, che! Lo matan y no sabe que muere para que se repita una escena. »
20080301
lisboa
Quase cinco da manhã no Marquês de Pombal. O taxista dorme e eu tenho de bater na janela para que ele me abra a porta. Na rádio passa a Sangue Oculto dos GNR, aquela em que o Reininho faz um dueto com um espanhol. A música contribui para aumentar a minha confusão linguística. Com a voz ensonada, o taxista quer saber que caminho prefiro e pelo tom deixa entender que está a repetir a pergunta. Cá fala-se muito mais baixo: em Madrid teria sido impossível eu não ouvir à primeira.
barajas
Virgínia, a rapariga do check-in, informa-me do valor que tenho a pagar por excesso de bagagem. Arregalo os olhos e pergunto se posso comprar outra passagem e ter direito a mais vinte quilos. Ela responde que não, que cada pessoa só pode comprar um bilhete, que não pode haver passageiros fictícios. Em desespero de causa, ponho a seguinte questão: e se eu fosse um violoncelista, um contrabaixista e quisesse levar o instrumento junto de mim? Virgínia não se dá por achada e diz-me que nesse caso registaria um passageiro chamado "Contrabaixo".