20070930

strawberry jam

Um homem sozinho num quarto de hotel que não é turista, viajante, imigrante. Sinto um certo apelo por este tipo de personagem, a daquele que se limita a esperar algo: uma mulher difícil, um determinado acontecimento, a oportunidade de um crime. Aparecem amiúde nos livros e nos filmes, às vezes com bons resultados, outras nem por isso. Sempre tive curiosidade em saber em como me sentiria sendo um deles; como seria estar só, sem ter de correr contra o tempo que se esfuma até à hora do avião de regresso. Bem vistas as coisas, até agora nunca tinha estado num quarto de hotel sem ninguém com quem o partilhar - ainda que classificar como hotel este singelo Hostal Perez não seja talvez o mais exacto.
Os meus primeiros dias em Madrid foram intensos, desgastantes. Encontrar uma casa é difícil por estes lados, mais do que imaginava. A procura é muita e a oferta não é tanta quanto isso. Daí que os preços sejam elevados e não haja uma correspondência proporcional entre o que é disponibilizado e o que é pedido em troca. Fiz dezenas de telefonemas, mandei alguns e-mails, vi umas quantas casas. À conta disso iniciei esse processo interminável e sempre gradual que é o de interiorizar as distâncias, assimilar o espaço, entrar na dinâmica de uma cidade. Apesar de ter já estado em Madrid no ano passado e de me recordar da sua geografia, o meu olhar é agora diferente, mais dirigido aos aspectos práticos da vivência quotidiana. Depois de algumas frustrações recebo uma resposta positiva: Manuela, uma trintona que parece ser fixe com dois filhos, Leonardo e Jorge, quatro e treze anos, dá-me o seu aval: me parece muy bien que vengas. Não tinha imaginado uns companheiros de casa assim e o preço é acima do orçamento inicial. No entanto, o tamanho do quarto, a localização da casa, a sombria perspectiva de ir gastando dinheiro indefinidamente em noites no hostal e a boa impressão que Manuela e os pequenos me causam fazem-me avançar. Mudo-me amanhã para a minha nova casa, Calle de Toledo, 19, 4. izq., 28005 Madrid. Para quem conhece a cidade, é a rua que sai da Plaza Mayor para sul, na direcção da Latina. Para os outros, recorrendo a um paralelismo imperfeito com Lisboa, seria mais ou menos como estar na Rua Aúrea (ou do Ouro). Invejável, portanto.
Que faz um solitário durante a noite, quando não tem de procurar casas? No meu caso, cansado de caminhar, janto em condições, bebo umas cervejas (gosto da Mahou) ou uns copos de vinho, vejo futebol e oiço música. Ontem assisti a um concerto de um sexteto de jazz num bar porreiro chamado Populart - entradas gratuitas e bebidas caras. A aborratar por ser sexta e com gente de proveniências distintas: espanhóis residentes, italianos bonitos, um par de nórdicos de expressão sorumbática mesmo nos picos da música, americanos enormes entendidos em jazz, that's from George Benson, he'd be proud. Gosto muito do concerto e do sítio, mas não tenho carteira que aguente assim tantas idas lá. Além disso fica nas Huertas, relativamente longe da minha localização actual, em Argüelles. O sítio que eu adopto como base é café, cervejaria e restaurante ao mesmo tempo: o nome é Dublín, embora não seja irlandês. É de facto bastante espanhol, servindo-se pinchos de empanada galega e tortilha, montados de lomo e umas tapas porreiras (destaque para as anchovas e para a salada russa). Começo a dar-me bem com os empregados: Juan, espanhol carrancudo, Jorge, um rapaz simpático de aspecto índio, possivelmente peruano, e uma mulata (Conchita, acho) que além de muito bonita é bastante reivindicativa e que me parece vinda do Caribe. É no Dublín que vejo uns quantos jogos de futebol: Athletic Bilbao - Atlético Madrid, Barça - Zaragoza, Real Madrid - Betis, Barcelona - Levante. Há alguns habitués da bola e houve um com quem conversei, primeiro sobre o futebol, depois sobre o resto. Comentamos a importância de Sneijder no actual Real Madrid, a segunda época dos galácticos (eixo Makélélé-Zidane), a rotação de bola do Barça, a capacidade de antecipação de Messi, a recente crise de Deco aparentemente contariada nos últimos jogos, o dream team do início dos anos 90, Stoichkov, Romário, o campeonato que o Levante reclama ter ganho no tempo da Guerra Civil. Diz-me que por mais jogadores que apareçam nenhum será como Maradona. Que se meteu num comboio com uns amigos quando tinha vinte anos e que fez mil quilómetros para o ver jogar; nessa altura Maradona era ainda adolescente. Pergunto-lhe se é argentino, então. Confirma, chama-se Mário, mas todos lhe chamam Pajaro. Músico sem banda fixa, costuma tocar em estúdio e fazer digressões com gente conhecida, diz. Saiu da Argentina há vinte e seis anos, andou pela Europa central e do norte, pelo Kuwait antes da guerra. Toca guitarra e gosta principalmente de jazz e de música brasileira. Falo-lhe no concerto no Populart e ele diz-me que costuma tocar por lá. Convida-me para a sua próxima actuação num sítio chamado El Junco e faz-me um mapa no meu caderno. É na segunda-feira e também não se paga.

1 comentário:

Anónimo disse...

João, acompanho-te por este meio.
Um abraço,

Rui Martins (Faculdade)