20080323

entardecer

Sexta-feira santa, cansado da inércia doméstica, saio. Em Madrid passar a porta do prédio equivalia a diluir-me num magote. Hoje, nesta pacata zona de classe média-alta, não me cruzo com ninguém excepto algumas esvoaçantes gaivotas, sinal de mau tempo no rio. Apanho o metro e mergulho nas desventuras de Madame Bovary. O destino é vago; quero um sítio onde possa ler. A apneia flaubertiana é curta, vinte minutos e saio no Rossio. Para os lados das Portas de Santo Antão muitas dezenas de muçulmanos conversam animadamente. São escrutinados pelo olhar pós-imperial de ingleses afundados em canecas de cerveja.
É feriado e calculo que haja uns quantos cafés fechados. Opto por um lugar habitual perto do Carmo e sento-me no pátio interior. Entro de novo em Flaubert e lá me deixo ficar. Até que o ruído aumenta e a minha leitura é perturbada por uma conversa sobre decoração de interiores. Olho em redor: andam todos pelos trinta anos e procuram passar a imagem de um estilo casual. São vendedores imobiliários, designers de logótipos e gestores de risco, tudo ofícios dignos e interessantes. O que me incomoda é estar enfiado no meio de uma corja de yuppies. Pago e saio, mastigando uma zanga de alvo difuso. Sopra um vento frio e o entardecer avança veloz. Desisto de ler e resolvo perseguir uma boa panorâmica do pôr-do-sol. Um desígnio piroso que justifico com a minha recente chegada a Lisboa.
Desço o Chiado, cruzo a Rua da Vitória, subo na direcção de Alfama, faço becos com nomes de santos e nobres a caminho da Costa do Castelo. Apetece-me andar e faço um trajecto intrincado e pouco directo. Uns espanhóis pedem-me indicações e eu aproveito para soltar o castelhano do seu encarceramento. Contorno as muralhas, acelero até à Graça e chego ao miradouro a tempo de apanhar a parte final da rota solar. Uma pequena multidão de turistas tira fotografias e alguém tenta tocar a Hey Joe do Jimi Hendrix com uma guitarra acústica. Gosto dos jogos de espelhos que Lisboa permite: no miradouro de São Pedro de Alcântara, na colina do lado de lá, alguém há-de estar a mirar na nossa direcção. O sol some-se e a temperatura desce.
Enterro as mãos nos bolsos das calças e desço pelo Caracol da Graça até à Mouraria. Uns quantos encapuzados abanam o pescoço ao ritmo de kizomba. Oiço um brasileiro lamentar-se: tem documentos retidos na embaixada porque vinham em nome de Luiz e não de Luís. Chego ao Martim Moniz e penetro no piso subterrâneo do caleidoscópico centro comercial. Os indianos fecham as mercearias e uma família de ciganos negoceia com um revendedor chinês. Apanho o metro de volta à minha tranquila zona residencial.

20080320

cem por cento nacional

Tiro do congelador umas costeletas de porco embaladas. O pacote ostenta um autocolante com uma bandeira portuguesa debaixo da qual se lê um orgulhoso 100% nacional- nascido, criado, alimentado, abatido e desmanchado em Portugal. Na minha cabeça forma-se a imagem de um robusto e irascível suíno luso, um nobre animal de ascendências longínquas. A carne dos seus antepassados era salgada para depois alimentar os marinheiros na época dos Descobrimentos; Nuno Álvares Pereira celebrou o triunfo de Aljubarrota comendo o lombo de um membro desta linhagem. E aqui estou eu, gerações e séculos volvidos, resistindo à tentação do indecoroso e sabujo porco castelhano, prestes a cozinhar uma parte do distinto e venerável animal português.

s. (1)

Conheci-a numa festa de franceses: as pessoas, o estilo delas, a música que se ouvia e aquele modo particular de se ficar bêbedo. Ela, vinda de Sevilha, e eu, deste rectângulo entalado entre Espanha e o Atlântico, éramos as excepções àquela homogeneidade. Saímos juntos três ou quatro vezes, as suficientes para que ela partilhasse comigo os seus problemas: a anorexia, os infelizes anos do colégio, as infidelidades da mãe, o esgotamento do pai, a promiscuidade das irmãs, o ambiente fechado da aristocracia andaluza. Não se limitava à comiseração. Falava-me também dos passeios pelo Mediterrâneo no iate do pai e dos livros de Javier Marías.

20080314

a cidade e as serras

E rolávamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavalo, ergueu a bengala, estacou a nossa vitória para perguntar a Jacinto se aparecia à noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu Príncipe rosnou um «não, parto para o sul...» que mal lhe passou de entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da História Sagrada e da História Romana!... Madame Verghane, de Madalena, de braços nus, peitos nus, pernas nuas, limpando com os cabelos os pés do Cristo! -O Cristo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministério da Guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia também Lucrécia na cama, e Tarquínio ao lado, de punhal, a puxar os lençóis! E depois ceia, em mesas soltas, todos nos seus trajes históricos. Ele já estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agripina! Quadro portentoso esse -Agripina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as formas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por polidez, ficara combinado que Nero admiraria sem reserva todas as formas de Madame de Malbe... Enfim colossal, e estupendamente instrutivo!
Acenámos um longo adeus àquele alegre Marizac. E recolhemos sem que Jacinto emergisse do silêncio enrugado em que se abismara, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e fortes. Depois, em frente ao Arco de Triunfo, moveu a cabeça, murmurou:
-É muito grave, deixar a Europa!


(Eça de Queiroz)

20080310

cuestión

Escribir servía más bien como método de escape al monopolio del castellano en mi entorno. ¿Y ahora qué?

malito (3)

Estou constipado há duas semanas. Não me dói a cabeça nem tenho a garganta arranhada, sou só vítima de um contínuo acumular de lixo biológico no nariz. Esta ocorrência contraria a minha pretensão de ser imune a isso a que se chama doenças.

20080308

la trama

Um pequeno conto de Jorge Luis Borges chamado "La trama" que talvez agrade à malta da Trama:

« Para que su horror sea perfecto, César, acosado al pie de la estatua por lo impacientes puñales de sus amigos, descubre entre las caras y los aceros la de Marco Bruto, su protegido, acaso su hijo, y ya no se defiende y exclama: ¡Tú también, hijo mío! Shakespeare y Quevedo recogen el patético grito.

Al destino le agradan las repeticiones, las variantes, las simetrías; diecinueve siglos después, en el sur de la provincia de Buenos Aires, un gaucho es agredido por otros gauchos y, al caer, reconoce a un ahijado suyo y le dice con mansa reconvención y lenta sorpresa (estas palabras hay que oírlas, no leerlas): ¡Pero, che! Lo matan y no sabe que muere para que se repita una escena. »

20080301

charles mingus



Solo dancer.

lisboa

Quase cinco da manhã no Marquês de Pombal. O taxista dorme e eu tenho de bater na janela para que ele me abra a porta. Na rádio passa a Sangue Oculto dos GNR, aquela em que o Reininho faz um dueto com um espanhol. A música contribui para aumentar a minha confusão linguística. Com a voz ensonada, o taxista quer saber que caminho prefiro e pelo tom deixa entender que está a repetir a pergunta. Cá fala-se muito mais baixo: em Madrid teria sido impossível eu não ouvir à primeira.

barajas

Virgínia, a rapariga do check-in, informa-me do valor que tenho a pagar por excesso de bagagem. Arregalo os olhos e pergunto se posso comprar outra passagem e ter direito a mais vinte quilos. Ela responde que não, que cada pessoa só pode comprar um bilhete, que não pode haver passageiros fictícios. Em desespero de causa, ponho a seguinte questão: e se eu fosse um violoncelista, um contrabaixista e quisesse levar o instrumento junto de mim? Virgínia não se dá por achada e diz-me que nesse caso registaria um passageiro chamado "Contrabaixo".